A expressão serena e o raciocínio articulado do arquiteto e urbanista
Kazuo Nakano são um contraponto aos conflitos acirrados que permeiam seu trabalho no Polis - Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais. Pois o papel dessa ONG sediada em São Paulo é mexer no vespeiro das políticas públicas dos municípios brasileiros, apontando caminhos para o desenvolvimento socialmente justo do vasto território urbano.
Graduado pela FAU/USP, onde fez mestrado em estruturas ambientais e urbanas, e pós-graduado em gestão urbana e ambiental pelo IHS, na Holanda,
Kazuo Nakano entende que o mercado imobiliário é parte do grande negócio que pode impulsionar as cidades para um futuro melhor, com aproveitamento da infraestrutura. Mas ele adverte que o desenvolvimento social, a proteção das áreas livres, a melhoria dos deslocamentos coletivos e a conscientização política de que há metrópoles no Brasil são também assuntos de primeira ordem para a agenda urbana do país.
Há um grande número de operações urbanas em andamento em São Paulo. Sua constituição tem implícito algum vício de consequência negativa para a cidade?
Elas já estavam previstas no Plano Diretor de 2002, mas o problema é que faltaram mecanismos que priorizassem a utilização dos recursos obtidos com os leilões dos Cepacs [Certificados de Potencial Adicional de Construção] segundo um projeto urbano centrado no desenvolvimento social. As operações urbanas de São Paulo dão proeminência à lógica puramente mercadológica. É verdade que os agentes de mercado produzem e transformam as cidades, mas o dever do poder público é orientá- los por meio de um projeto que favoreça as pessoas, não apenas os negócios.
Falta, então, integração entre as secretarias para que se configure esse projeto de cidade?
Exatamente. Desenvolvimento, planejamento e gestão urbana são das áreas mais intersetoriais que existem. O transporte público está relacionado com o individual, que está relacionado com a infraestrutura de água, com a moradia, com a saúde, a educação, o comércio, com as áreas de lazer e com as áreas verdes. O território urbano nada mais é do que uma rede de interações entre atividades e agentes sociais, políticos, econômicos, culturais.
A quem cabe promover essa articulação?
Ao poder público.
Através de uma instituição específica?
Teríamos que repensar a organização institucional para o desenvolvimento urbano. Temos hoje o vício de desmembrar a secretaria de planejamento da de obras, da de infraestrutura, habitação e, agora, também da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano. Fica cada uma na sua caixinha fazendo os seus próprios projetos, os seus próprios investimentos, mas muitas vezes o trabalho se sobrepõe, há um desperdício enorme de recursos.
Sem coordenação, os projetos acabam caminhando de maneira atravancada. E as grandes cidades brasileiras estão entrando na tendência de elaboração de grandes projetos urbanos, não só por conta das operações urbanas, mas pelos contextos da Copa do Mundo e da Olimpíada também.
Sem a integração, que projeto de cidade está em andamento em São Paulo?
O Estatuto da Cidade, principalmente no seu artigo 2º, tem esboçado um projeto de cidade. Está lá cada uma das diretrizes para o estabelecimento de uma política urbana brasileira, que concretize uma visão de cidade democrática e com justiça social. Uma cidade sustentável, que não depedra os ecossistemas e não destrói os recursos hídricos.
É viável esse projeto para São Paulo?
O grande desafio é tirar aquilo do papel e traduzir em ações concretas. Há 20 anos, havia toda uma agenda de efetivação dos direitos sociais nas cidades. O cenário mudou, precisamos juntar processos de planejamento, a médio e longo prazos, com obras, ações e investimentos que já têm recursos disponíveis. Ações que beneficiem o maior número de pessoas, que vivem e trabalham na cidade; nós favorecemos a agenda que contempla o interesse coletivo.
Como o senhor avalia a relação custo/ benefício, por exemplo, da operação urbana Água Espraiada?
Na forma como está sendo proposta, ela tem mais malefícios do que benefícios. O problema é priorizar grandes obras viárias, que reforçam o modelo falido da cidade feita para o carro individual. É consenso que São Paulo não suporta mais esse modelo. Os congestionamentos deterioram tanto os espaços públicos como as condições de vida das pessoas, geram disfunção econômica.
E o argumento de que a ligação com a Imigrantes prestaria um grande serviço à cidade?
Fico me perguntando qual é a motivação disso. Naquela região já está sendo pensado o monotrilho, que vai ligar o Jabaquara ao metrô Vila Sônia, passando por Congonhas, junto ao eixo da Água Espraiada. Por que não adotar essa premissa, do transporte de massa sobre trilhos, como o estruturador do projeto, em vez de um túnel que nem transporte coletivo permite? A ampliação da marginal do Tietê está aí para provar que esse tipo de investimento é muito caro para efeitos tão reduzidos. Foi utilizado 1,75 bilhão de reais na ampliação viária e com isso se reduziu o congestionamento local em apenas 30%, nem impacto nas vias da região ele teve. Sem contar que gerou um ambiente inseguro, com sinalização malfeita, que provoca acidentes. Valeu a pena? Não, foi um projeto com resultado irrisório.
O
argumento da criação de um grande parque linear na beira do córrego da Água Espraiada não sustenta o projeto?
É uma tendência das grandes cidades de países desenvolvidos perderem suas áreas abertas, a terra desocupada passa a ser objeto de disputas muito acirradas. Temos que preservar uma oferta equilibrada desses espaços na cidade, mas não se pode desperdiçar o investimento com sistemas viários, que é o habitual aqui em São Paulo. Não adianta retalhar nossos espaços abertos com vias para carros, como aconteceu na própria marginal do Tietê.
Se um governante desse prioridade total ao sistema de transporte público de São Paulo, a quantos anos estaríamos de melhorias efetivas?
Os investimentos em metrô, que já vêm acontecendo desde a década de 1970, ganharam novo impulso nos anos 1990. A coisa andou a passo de tartaruga nesse período, mas, mesmo assim, os efeitos foram positivos. Se houvesse uma aceleração nos investimentos, que já estão até mesmo previstos e planejados, em dez anos teríamos outra cidade. A demanda é permanente. A linha 4 do metrô estrutura o filé mignon de São Paulo, a coluna vertebral do quadrante sudoeste, ligando todos os polos do centro histórico (Sé/República) à região da Faria Lima. Essa linha estrutura os grandes centros econômicos, de emprego e de consumo, beneficiando muita gente que vem de outras partes da cidade para trabalhar aqui.Por muito tempo fingimos que não existia metrópole no Brasil, desconsideramos esse fato concreto e também a necessidade de pensá-lo como uma nova forma de governo, de planejamento, de gestão supramunicipal.
Com relação às centralidades transversais, o que está sendo pensado para São Paulo?
Estão começando a tomar corpo político as discussões sobre a dimensão metropolitana de São Paulo. Isso é muito importante. Por muito tempo fingimos que não existia metrópole no Brasil, desconsideramos esse fato concreto e também a faminecessidade de pensá-lo como uma nova forma de governo, de planejamento, de gestão regional, que seja supramunicipal.
Qual o motivo dessa omissão?
A Constituição de 1988 estabeleceu um novo pacto federativo, que fez com que a política urbana mergulhasse de cabeça no movimento municipalista. Depois, o Estatuto da Cidade delegou aos governos estaduais a criação de regiões metropolitanas, mas suas bases institucionais e orçamentárias não foram pensadas. Existe muita discussão acadêmica sobre isso, mas pela primeira vez vimos em São Paulo, em Belo Horizonte, no Recife, as regiões metropolitanas entrarem no debate político.
Na implantação de parques lineares, muitas vezes a remoção das famílias é inadequada. Não adianta dar o cheque-despejo para as pessoas, isso não as ajuda a encontrar outra moradia e elas acabam indo morar em outra favela.
Poderia dar um exemplo?
As Câmaras Municipais instituíram o Fórum Metropolitano de São Paulo. Há também o Conselho Metropolitano, o Fundo Metropolitano, a Câmara Técnica Metropolitana no âmbito do governo estadual.
Desde quando?
De dois anos para cá. E há dois meses o governo paulista reinstituiu o governo metropolitano de São Paulo por meio de uma nova lei estadual. Ocorre que os planos diretores dos municípios metropolitanos não são coordenados entre si - Embu, por exemplo, está revendo o seu plano diretor, mas a região que a própria sociedade deseja preservar, uma APA [Área de Proteção Ambiental], é considerada como de urbanização superintensa pelo município vizinho, Cotia.
Quais as interfaces metropolitanas do município de São Paulo?
A região metropolitana é composta por 39 municípios. A nordeste a relação direta é com Guarulhos, a leste com Itaquaquecetuba e Ferraz de Vasconcelos, a sudeste com Mauá, Santo André, São Bernardo e Diadema, a sudoeste com Embu-Guaçu, Taboão da Serra e Cotia, depois Osasco e a noroeste e norte há uma relação muito forte com Caieiras, Franco da Rocha e Francisco Morato. Também o chamado ABCDOG, que é o ABCD [Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano e Diadema] mais Osaco e Guarulhos, formou uma coroa metropolitana em torno de São Paulo, de altíssimo dinamismo urbano, econômico, imobiliário.
O modelo metropolitano prioriza uma cidade policêntrica?
Sim, cria vários polos de emprego. Hoje já existe muita gente da zona leste indo trabalhar em Guarulhos ou no ABC. Fatos como esse é que caracterizam uma metrópole. Tem de haver multipolaridades. E nosso grande desafio é aproveitar ao máximo, para o bem social, as terras produzidas em torno desses focos metropolitanos.
Fale um pouco sobre as atividades do Fórum Metropolitano de São Paulo.
Foi uma iniciativa da Câmara Municipal de São Paulo, mas que ainda não chegou lá. Uma primeira tentativa de articular o Poder Legislativo municipal no contexto de uma visão metropolitana, pensando projetos integrados, mas eu diria que a coisa não pegou ainda. Acho que o Poder Executivo está um passo além, há hoje o projeto para integrar o trem com o metrô e com o sistema de ônibus, inclusive em termos de bilhetagem. Seria muito positivo termos o bilhete único metropolitano, basta ver o resultado da experiência com o bilhete único paulistano: houve a redução dos gastos com transporte no orçamento familiar e, assim, se reverteu a tendência de diminuição do número de usuários de ônibus em São Paulo. Mas o poder público tem que fazer a sua parte e cuidar para que a superutilização não deteriore o sistema. É aí que o município de São Paulo está falhando. A proposta era conjugar linhas curtas a linhas estruturantes, as primeiras nos bairros da periferia, alimentando as segundas, que fariam as conexões com o centro e com o quadrante sudoeste. Elas ocorreriam através de micro-ônibus, que circulam mais facilmente no truncado sistema viário dos bairros periféricos. Mas não houve o monitoramento público e a qualidade do serviço piorou muito.
Qual secretaria paulistana está fazendo corretamente a lição de casa?
Totalmente, nenhuma. Mas uma ação que acho interessante é a da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, que está implantando parques lineares na cidade. O objetivo é nobre, recuperar os rios e córregos, embora muitas vezes a remoção das famílias ocorra de modo inadequado. Não adianta dar o cheque-despejo para o cidadão, isso não o ajuda a encontrar outra moradia e aquelas pessoas todas acabam indo morar em outra favela.
Falta ação conjugada com a Secretaria de Habitação, então?
Exatamente. Poucas pessoas perceberam que o fato de não estarmos tendo um processo organizado de discussão sobre o planejamento e a gestão da cidade tem provocado prejuízos. A falta de consistência do debate público sobre as demandas e problemas reais esbarra na falta de clareza sobre as prioridades que deveriam ser consideradas na hora de aplicar os recursos públicos.
Por que a Secretaria Municipal de Planejamento Urbano, a Sempla, foi desmembrada na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano?
Essa dissociação reflete bem o estado atual de separação entre planejamento e realização de obras urbanas em São Paulo. Perdeu-se o planejamento de longo prazo e nem o Plano Diretor, nem a Lei de Zoneamento estão sendo aplicados ou monitorados como se deveria. Ao mesmo tempo, cria-se a SMDU para cuidar principalmente das operações urbanas e concessões urbanísticas, que estão sendo pensadas para os projetos da Nova Luz e quem sabe para a Água Branca também. Essa secretaria, então, está direcionada para a criação de condições para o desenvolvimento de negócios imobiliários. É esse o sentido da SMDU hoje na cidade, dissociado do processo maior de planejamento e regulação no longo prazo.
Qual o comparativo entre os orçamentos e atribuições da Sempla e da SMDU?
A Sempla está esvaziada, tanto em atribuições quanto em orçamento. Não tem dinheiro, atualmente é a SMDU que tem maior incidência nos processos urbanos.
Mas a densificação do território não é, em si, um argumento favorável dessas grandes operações urbanas em curso nas metrópoles brasileiras?
Temos que pensar o termo densidade de maneira cuidadosa. Há a densidade construtiva, que é metro quadradado por área; há a densidade demográfica, que é o número de pessoas morando por área da cidade; e há a densidade habitacional, que é o número de habitações implantadas em determinada área. O mercado imobiliário reivindica a maior densidade construtiva, mas não necessariamente ela implica maior densidade demográfica ou populacional, tampouco maior densidade habitacional, porque se pode aumentar o metro quadrado de área construída por unidade e ter, em determinado território, baixo número de moradores e unidades habitacionais. Então, o aumento do metro quadrado construído não necessariamente geraria um bom aproveitamento da terra urbana. A discussão sobre verticalização e adensamento deve estar orientada para o melhor aproveitamento da infraestrutura urbana. Os projetos em questão otimizam a ocupação da terra? Geram melhor melhor convívio entre as pessoas? Otimizam a habitação? Atendem ao maior número possível de pessoas com seus serviços e equipamentos? Não se trata apenas de ampliar o potencial construtivo para permitir mais metro quadrado privado e mais empreendimentos para serem comercializados. Não se trata apenas de garantir maior lucro.
Que parâmetro poderíamos utilizar, então, para analisar a densidade ideal de um grande projeto urbano?
Trabalhamos com um parâmetro chamado cota mínima por lote. A pergunta é quantas moradias se pode construir em determinada área, se pode ter casas geminadas ou um edifício de apartamentos. Em vez de limitarmos gabaritos, restringiríamos o número de habitações que se poderia construir num lote. Isso é interessante porque se pode ter a cota mínima e a máxima, sendo a primeira a ocupação ideal do lote urbano. Esse raciocínio poderia obrigar o empreendedor a diminuir seus edifícios até atingir a cota mínima, de modo a efetivamente se adensar a região.
Algum dos grandes projetos em andamento em São Paulo responde positivamente às questões que o senhor elencou há pouco?
Na forma como têm sido apresentados, não há nenhuma evidência de que eles gerem o bom aproveitamento do solo urbano. Um grande projeto urbano em cidades como Londres, Paris, Nova York ou Barcelona é diferente de um empreendimento similar numa cidade brasileira. Nossa realidade é outra, a nossa agenda urbana também. Temos muita desigualdade social e territorial, aqui as oportunidades de emprego e a qualidade urbana estão concentradas num pequeno espaço. Precisamos, então, pensar nossos projetos segundo outra lógicaNão podemos priorizar unicamente a dinamização da economia, deixando em segundo plano a geração de novas urbanidades e de novas sociabilidades, que favoreçam o espaço. Ele está cada vez mais deteriorado nas metrópoles brasileiras, está em curso um processo avassalador de privatização do espaço público. Atualmente está sendo proposta a comercialização de 20 áreas públicas na cidade de São Paulo, sob o argumento da utilização dos recursos arrecadados para a construção de creches. Não se sabe a localização, não se fez um mapeamento, só há algumas indicações de áreas no Itaim Bibi, na Mooca, na Baixa Augusta.
Quem propõe essa venda?
O secretário [de Desenvolvimento Econômico e Trabalho] Marcos Cintra.
Dá para se pensar num sistema de ciclovias em São Paulo?
Sim. Chega à casa dos milhões por ano o número de viagens por bicicletas e 70% delas são feitas para trabalhar, a maior parte na periferia. É algo que tem que ser pensado, precisamos de amplas ciclovias na cidade. Não adianta concebê-las apenas como lazer, o importante é conectar moradia e trabalho. Daí se conclui que não dá certo o convívio da bicicleta com o carro. A única coisa que garante a segurança do ciclista é a separação das vias. Faixas preferenciais são inoperantes.
Não podemos priorizar unicamente a dinamização da economia, deixando em segundo plano a geração de novas urbanidades. Nas metrópoles brasileiras, está em curso um processo avassalador de privatização do espaço público.
Que instrumentos o cidadão tem para monitorar a gestão urbana de São Paulo?
Não são muitos os canais de divulgação das ações da prefeitura, mas acho sempre importante saber o que está acontecendo, por exemplo, nos conselhos de habitação e política urbana. É preciso estar conectado com as redes sociais dos moradores e das associações de bairro. E também se deve estar atento à midia de massa. É sempre bom saber o que está sendo feito concretamente. Esse conjunto de coisas é que ajuda a saber como a cidade está sendo governada, ou desgovernada.
Por Evelise Grunow
Publicada originalmente em
PROJETODESIGN
Edição 380 Outubro de 2011
Fonte:
http://www.arcoweb.com.br/entrevista/kazuo-nakano-28-11-2011.html