A polêmica atual pela contratação de
médicos estrangeiros para assistir às comunidades mais carentes do país revelou
algumas das contradições mais evidentes do sistema social brasileiro. O país,
que tem evoluído no contexto da economia internacional nos últimos anos e que
se arruma para apresentação ao mundo através da
organização dos dois eventos de maior visibilidade planetária, expõe também sua
grave dívida interna, com amplos setores da população sem acesso aos serviços
mais elementares de saúde, assim como o preconceito que perdura as históricas e
vergonhosas divisões e exclusões sociais.
A iniciativa de integrar profissionais
médicos de outros contextos para resolver problemas angustiantes e emergenciais
resulta oportuna para refletir acerca de outra grave dívida social: a
urbanística.
As cidades do país apresentam
condições extremamente precárias em vários aspectos, derivadas de uma cultura
que negligenciou, nos últimos anos, o planejamento urbano e territorial e
adotou soluções de improviso, que hoje se manifestam no caos apresentado em
grandes centros urbanos. Muitos problemas da saúde pública, de grande parte da
população, derivam das condições precárias de alguns serviços básicos, como o
saneamento, provisão de água potável e outras infraestruturas, assim como da
persistência de moradias em condições infra-humanas.
A falta de planejamento e de controle
urbano do uso e ocupação do solo determina também a persistente ocorrência de
tragédias, que matam ou colocam em risco de morte grande parte dos setores mais
vulneráveis da sociedade. A origem da urbanística moderna foi resposta aos
problemas de higiene e comprometimento da saúde pública da cidade industrial.
Friedrich Engels editou, em 1845, o livro A
situação de Classe Trabalhadora na Inglaterra, onde descreve as penúrias
dos operários em Manchester, coração da Revolução Industrial, texto que
promoveu, dentre outros, a cultura do planejamento de cidades com condições
mínimas de higiene e habitação social. Com uma realidade diferente e evoluída,
as cidades brasileiras apresentam problemas de saúde que resultam
incompreensíveis de serem admitidos em pleno Século XXI, mais de um século e
meio após o manifesto de Engels, ao mesmo tempo em que o país assume a gastança
da grande festa dos eventos internacionais.
A saúde se cura perante o problema
consumado ou se faz prevenção para evitar que as doenças apareçam. O urbanismo
corretamente assumido e aplicado, com planejamento de curto, médio e longo
prazo, representa a garantia de prevenção da saúde social, estimula a convivência
sadia e civilizada, promove a participação cidadã e organiza o funcionamento
racional dos serviços urbanos. Situação muito diferente da realidade atual das
cidades brasileiras, doentes de imobilidade, falta de saneamento, insuficiência
de infraestrutura, violência e exclusão social, arrogância e pobreza, deterioro
dos espaços públicos e uma persistente falta de sensibilidade para projetar e
intervir nas cidades com a competência que deveria honrar a atuação de
arquitetos e urbanistas.
Persiste também, na formação
profissional, a ideologia do edifício isolado, sem preocupação com o contexto
urbano, assim como o caráter elitizado da profissão. O âmbito acadêmico, local
natural para a crítica e revisão do paradigma de desenvolvimento, assume, em
muitos casos, a simulação profissional como método de ensino e aprendizado, com
projetos que reproduzem, em muitos casos, o modelo caótico e doentio da cidade
em construção. A ausência de uma crítica consistente no ambiente acadêmico
perdura, salvo honrosas exceções, a formação de profissionais obedientes de um
sistema comprovadamente deficiente, sem o compromisso social que reclama a
sociedade, situação que desvaloriza o prestígio da profissão.
O planejamento das cidades no Brasil
revela-se, junto com saúde e educação, uma das grandes dívidas sociais que
precisa ser assumida em caráter emergencial. Os problemas superam a paciência
das pessoas e complicam o normal desempenho das funções sociais e urbanas. A
classe política vê-se acuada e desbordada perante uma realidade derivada,
principalmente, das políticas recentes de incentivo da mobilidade privada. O
momento de crise é a oportunidade da arquitetura e urbanismo proporem novos
paradigmas de desenvolvimento urbano, se a classe profissional souber assumir o
compromisso que a hora exige.
Roberto
Ghione, arquiteto
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