“O desenho investe, estrutura o projeto. Há nessa atitude o sentido de atirar-se para frente. Nunca é arbitrário”
Praia de Iracema, Fevereiro de 2017.
Caros colegas,
As vezes pode parecer inútil a ideia de procurar uma autonomia para nós, para a nossa América, nesse começo de século de incertezas e tanta inquietude. A morte da literatura, da pintura, da Arquitetura … A morte anunciada da arte, proclamada pelos coveiros dos tempos sem história, simbolicamente trai a morte do homem.
Conversar com vocês sobre o desenho é negar essa perspectiva medonha. É estabelecer formas de interlocução com a história, com o prazer cotidiano das pessoas, com a memória e a imaginação de vocês, com este lugar e com os lugares de todos os tempos. É palmilhar um caminho contando com os ingredientes indispensáveis do conhecimento e das possibilidades, de transmiti-los com emoção, para acentuar a dimensão estética e o caráter transformador do saber e da cultura arquitetônica. E fixar num plano – demarcado pela voracidade da história moderna e pelo capitalismo – um sutil apelo em favor do compromisso com as possibilidades e capacidades da invenção humana como alternativa à falta de certezas e contra a contaminação cultural destruidora de valores culturais, signos populares e formas de convivência social.
Pois bem, eu cá com meus botões, direi com todo zelo, feito um poeta e me restarem como dons, apenas o amor e a arte, em cima deles conceberei um mundo.
Eis aí, exposto de maneira singela, os caminhos da minha utopia. Disso trataremos aqui. Para tanto, escoro-me na sabedoria de dois ilustres professores que nesta terra brasileira construíram suas vidas, irradiaram seus conhecimentos e a quem devo muito do que sou, como artista e arquiteto. Falo dos mestres Vilanova Artigas e Flávio Motta.
Com eles aprendi a crer na razão, nas possibilidades da cultura e da técnica. Na democracia e na liberdade como pressupostos fundamentais para existência do homem sobre a erra. Na liberdade que não sobrevive sem o oxigênio do debate que os pulmões do homem político aspiram. Quero dizer com isso que a liberdade precisa exercitar-se – como certamente faremos aqui – e para que esse exercício faça-se exequível, é necessário fincar os pés com vontade naquilo que nos interessa, faz livre os homens e fortalece as instituições. Obviamente, se quisermos, com efeito, regenerar o que possuímos e emergir da desordem, do tumulto, da mediocridade acabrunhada e da decadência que acorrentam o nosso futuro.
O desenho, única linguagem entre nós que não carece de interpretes, nasceu com o grafismo paleolítico. Origem das primeiras manifestações ardentes do instinto mágico do homem. Ali já se mostrava carregado de um intrínseco desejo, de uma vontade de possuir e dominar.
Não conseguindo dizer melhor, valho-me do que disse o Artigas, em sua memorável aula para os novos alunos da FAU-USP em 1967.
“O desenho no Renascimento ganha cidadania. Se de um lado é risco, traçado, mediação para a expressão de um plano a realizar, linguagem de uma técnica construtiva, de outro é desígnio, intenção, propósito, projeto humano no sentido de proposta do espírito.
Um espírito que cria objetos novos e o introduz na vida real.
O desígnio do Renascimento, donde se origina a palavra para todas as línguas ligadas ao latim, como era de se esperar, tem dois conteúdos entrelaçados.
Um significado e uma semântica, dinâmicos, que agitam a palavra pelo conflito que ela carrega consigo ao ser expressão de uma linguagem técnica e de uma linguagem para a arte.”
A noção de desenho, particularmente o desenho industrial, tem assumido entre nós um sentido restrito. Reduzindo-se a forma de determinado produto (o automóvel, o eletrodoméstico, o móvel…), correspondendo no campo da arquitetura ao equívoco de considerá-la como um dos aspectos da produção.
A palavra desenho deve reapropriar-se do seu mais longínquo. Deverá conter o propósito humano de transformar as condições de vida dos indivíduos, de estabelecer novas relações humanas, de construir a história, o próprio homem, a sociedade, um modo de ocupar a terra, de tratar a natureza. Esta ideia de reafirmar, de reapropriação de um conceito, tem o condão de se antepor às impertinentes e pouco precisas especulações de caráter filosófico de tendências arquitetônicas ou correntes estéticas que constituem o alimento de pernósticos debates e toma conta de muitas cabeças.
Fonte e artigo completo: http://www.caubr.gov.br/o-desenho-artigo-do-arquiteto-e-urbanista-campelo-costa/
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