A
miserabilidade é evidência da decadência humana, que se manifesta, em termos
sociais, na arrogância, prepotência, impunidade e autoritarismo com que
determinados grupos agem em benefício próprio e em detrimento do bem estar
geral, acobertados por um sistema baseado na troca de favores entre o poder
político e setores de produção ou de prestação de serviços. A condição de
miséria espiritual que permeia as ações destes grupos se traduz na miséria real
que sofrem amplas franjas da população historicamente relegadas e sem
oportunidades de desenvolvimento social, cultural ou econômico. A triste
circunstância desses setores atrela um país à situação de subdesenvolvimento e,
por tanto, alheia aos requerimentos de integração e intercambio global entre os
países desenvolvidos do planeta.
A cidade evidencia, na estrutura
urbana, as marcas da miséria. Edifícios excludentes e condomínios fechados, shopping
centers, informalidade e descaso nas áreas de comercio popular, calçadas
deterioradas, espaços públicos decadentes, centros históricos abandonados,
periferias urbanas degradadas, habitações precárias em terrenos invadidos e em
áreas não aptas para a moradia humana, falta de saneamento e infraestrutura,
transporte público deficiente, conjuntos habitacionais sem características de
cidade, improviso e falta de planejamento são, dentre outras, as marcas
vergonhosas da miséria social, que demonstram a indignidade a que é submetida
grande parte da população brasileira e a persistência da desigualdade e injustiça
social, que impedem atingir o patamar de verdadeiro desenvolvimento.
O antídoto contra a miséria é a
dignidade e a promoção da auto-estima social. Arquitetura e urbanismo, levados
a sério e comprometidos socialmente, são instrumentos que possibilitam
dignificar a pobreza e iniciar processos efetivos de desenvolvimento social e
urbano. Para isso, precisa-se de uma postura ética do próprio exercício
profissional, assim como das decisões políticas, orientada a favorecer o
interesse geral por cima do particular ou setorial.
A consciência do poder transformador
da arquitetura e do urbanismo revela-se em intervenções em áreas periféricas
com edifícios dignos e estimulantes do desenvolvimento humano e urbano. As
bibliotecas de Medellín e Bogotá, dentre outras ações, são lições da
importância de prestigiar os habitantes mais carentes com obras de qualidade
arquitetônica e construtiva. A consciência que pobre não precisa arquitetura,
tão comum nas intervenções que se realizam nas cidades brasileiras, manifesta
um preconceito que mergulha a sociedade na desintegração e na violência. Esta
realidade merece ser mudada em função de uma atitude ética que privilegie as
pessoas mais necessitadas em benefício de toda a comunidade.
Cicatrizar as marcas da miséria e
conter o sangramento ético provocado pela corrupção persistente constituem os
grandes desafios das sociedades em desenvolvimento. As manifestações recentes
nas cidades brasileiras evidenciam
a presença de grupos sociais esclarecidos e conscientes dos direitos e
oportunidades de transformar uma realidade adversa, que os condena a uma vida dependente
de atitudes defensivas em centros urbanos que perdem, a cada dia, a condição de
convivência pacifica e civilizada.
Hoje, as cidades brasileiras
enfrentam a maior crise da história. Elas se encontram, por tanto, frente às
maiores oportunidades de transformação. As alternativas são poucas: afundar na imobilidade,
violência e desintegração social que oferece o modelo atual fragmentado e
excludente, ou apelar à sensibilidade e à inteligência para planejar com visão
de longo prazo a cidade para uma sociedade integrada e inclusiva, sustento do
desenvolvimento genuíno e duradouro.
Os desafios são urgentes e precisam das
forças sociais mais esclarecidas para sentar as bases de planejamento e construção
da cidade merecida. É preciso dar uma oportunidade à arquitetura e urbanismo
qualificados e comprometidos com a ideia que fazer cidade significa algo mais
que a simples construção de edifícios, repensar os centros urbanos como espaços
de convivência humana e não como palcos de negócios imobiliários, promover e
exigir sistemas de atuação e avaliação política que valorizem o interesse geral
em lugar dos particulares ou setoriais, estimular a imaginação e a emoção para
a construção dos lugares urbanos em lugar da fria observância de leis
burocráticas e tecnocráticas, consagrar uma ética humanista em lugar de
comercial, e curar para sempre as marcas da miséria, que colocam a sociedade
nos extremos da indignidade e do subdesenvolvimento no panorama deprimente das
cidades contemporâneas brasileiras.
Roberto
Ghione, arquiteto
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