Touring Club : transponibilidade e direito à cidade

Touring-Maquete
Nessa semana teve início uma nova discussão sobre a antiga sede do Touring Club de Brasília, projeto do arquiteto Oscar Niemeyer. Após ser leiloado pelo poder público, o edifício, que é tombado, foi alugado a uma igreja que, segundo matérias no jornal Correio Braziliense e publicação na rede social de Maria Elisa Costa, filha de Lucio Costa, estaria descaracterizando a arquitetura original e o uso previsto. O prédio, que fica na Plataforma da Rodoviária, foi projetado para abrigar uma casa de chás avarandada, mas houve uma mudança de programa e em 1963 foi construído como um “centro de serviços culturais e turísticos”  do clube de automóveis ver reprodução da Revista Módulo, n.30 abaixo. No piso inferior havia uma estação de reparos, manutenção e abastecimento, como é costume nesse tipo de atividade. Após o fechamento do Touring Club, o local já passou por diversas atividades, entre elas, exposição de decoração, posto de gasolina, posto policial e agora anexo da Rodoviária de Brasília.
O uso da sede do Touring Club como extensão da Rodoviária de Brasília foge completamente da intenção dos arquitetos Lucio Costa e Oscar Niemeyer ao obstruir o percurso até a biblioteca e o museu com um emparedamento de ônibus. Ainda assim, permanece o espírito transitivo e público do edifício. No entanto, a concessão do pavimento superior a qualquer função privada ou de acesso limitado, como o caso de uma igreja, é provocadora às relações entre as escalas urbanas que caracterizam o núcleo monumental e gregário de Brasília e que determinaram seu tombamento como patrimônio mundial da humanidade. Pior ainda é a privação dos fluxos e usos do espaço público em uma cidade que amadurece cada dia mais sua relação, muitas vezes incompreendida, de apropriação dos gramados, das praças, das ruas e dos pilotis. É a cidadania exercendo seu direito à cidade.
O espaço mais representativo da capital da República é certamente a Esplanada dos Ministérios com sua perspectiva monumental. No entanto, o Setor Cultural de Brasília é o único trecho da Esplanada ainda incompleto. Na impossibilidade da execução total de seu projeto no período de inauguração da cidade, o urbanista Lucio Costa teve que selecionar e apontar os edifícios mais significativos para a construção imediata e configuração da paisagem urbana que definiria o caráter de Brasília.
Dentre os edifícios culturais, Lucio Costa optou pela construção do Teatro Nacional e pelo Touring Club, ou a chamada casa de chá: (…) um pavilhão de pouca altura debruçado sobre os jardins do setor cultural e destinado a restaurante, bar e casa de chá.” (Lucio Costa, 1957). Por que esses dois e não um museu ou biblioteca, que só seriam construídos 40 anos depois? Que importância têm esses prédios? O Teatro tem o viço imponente das arquiteturas piramidais antigas e a presença no imaginário do brasiliense já conquistada. Mas por que um discreto pavilhão de pouca altura, de estrutura pré-moldada sutil, e uma transparência que o torna quase invisível teve maior ênfase em sua escolha? Além de sua atribuição funcional existe outra questão relevante, seu local de inserção na cidade.
Como antecipadores da atual discussão sobre a paisagem urbana e a vitalização de espaços urbanos, discutidas por Solá-Morales, Rem Koolhaas, Zigmunt Bauman e outros, Lucio Costa e Oscar Niemeyer colocam nesse singelo edifício um papel quase nunca comentado, o de transponibilidade entre os níveis do Setor de Diversões e o Setor Cultural. Desde o projeto inicial, Niemeyer previa uma grande rampa-passarela que atravessaria a praça superior em frente ao Touring até seu pavimento inferior contíguo ao Setor Cultural. No projeto executado duas escadas promoveriam essa ligação, mas hoje elas estão bloqueadas. Além disso, no relatório do Plano-Piloto de Lucio Costa, de 1957, torna-se visível que a disposição desses elementos arquitetônicos evoca um sentido mais amplo de fluidez e interação gradativa com o ambiente urbano:
“Nesta plataforma onde, como se via anteriormente, o tráfego é apenas local, situou-se então o centro de diversões da cidade (mistura em termos adequados de Piccadilly Circus, Times Square e Champs Elysées). A face da plataforma debruçada sobre o setor cultural e a esplanada dos ministérios, não foi edificada com exceção de uma eventual casa de chá e da ópera, cujo acesso tanto se faz pelo próprio setor de diversões, como pelo setor cultural contíguo, em plano inferior.3
A “casa de chá”, como já foi dito, é o Touring; a “ópera”, o Teatro Nacional. As duas obras exercem um papel crucial para a leitura contínua das escalas urbanas de Brasília e para o percurso desimpedido sobre o jogo de desníveis e terraplenos deliberado pelo urbanista. A continuidade é ponto determinante na concepção arquitetônica dos dois edifícios, que preveem em ambos a transposição franca entre os níveis do Setor de Diversões e o Setor Cultural como função condicionante dos fluxos urbanos. Rampas, escadas e passarelas definem eixos e percursos, buscando na dinâmica da cidade a vitalidade necessária para o funcionamento de seus espaços.
Um governo conciliador e que pretende “recuperar os espaços culturais e ampliar a oferta de equipamentos culturais” não pode permitir essa cisão, esse corte, essa barreira tão contraditória à natureza de nossa cidade. Uma coisa é não avançar, outra é voltar para trás, retroceder e fechar os olhos a uma discussão e comportamento vigentes nos grandes centros urbanos do mundo.

Cecília Sá é Arquiteta e Professora Substituta na FAU-UnB.

Para conhecer mais sobre a história do Setor Cultural de Brasília, ac
SÁ, Cecília Gomes de. Setor cultural de Brasília : contradições no centro da cidade. Porto Alegre: Dissertação (Mestrado em Arquitetura). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Arquitetura. Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura, Porto Alegre, 2014.

Fonte: http://docomomobsb.org/2015/10/27/touring-club-transponibilidade-e-direito-a-cidade/#more-139337

                                                                                                                                                                                                                  Publicação do projeto original do Touring, por Oscar Niemeyer, na revista Módulo, n.30, out.1962.
 





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