Cidade democrática

Cidade democrática

A consolidação de uma cidade democrática deveria ser o objetivo central da instrumentação de uma política urbana por gestores comprometidos efetivamente com a defesa do interesse geral por cima dos particulares ou setoriais. Tal enunciado, normal nas sociedades civilizadas, resulta um desafio de enormes proporções para países de baixo nível de desenvolvimento, como o caso do Brasil, onde a persistência da desigualdade e injustiça social coloca em crise a legitimidade das representações dos setores menos favorecidos e transforma o regime democrático em uma questão de aparência e não de essência.

De fato, as instituições democráticas estão constituídas, o sistema eleitoral funciona, as leis são formuladas, mas os efeitos não chegam à sociedade e isso se manifesta cruamente nas precárias condições de urbanidade das cidades. A desintegração social se torna crítica quando o conluio entre interesses setoriais e políticos define políticas e leis que beneficiam a uma parte minoritária e estimula a exclusão da maioria. Os conflitos humanos e urbanos que hoje padece o Brasil derivam da falta de legitimidade das decisões, assumidas conforme o sistema democrático, mas que, na realidade, só representam e beneficiam a determinados setores, com a complacência da mídia institucionalizada, que manipula a opinião pública com uma ideologia de falso progresso traduzida em estímulos de consumo e imagens de modernidade favoráveis aos grupos de poder e alheias aos interesses gerais da sociedade.

Na realidade das cidades brasileiras, um compromisso essencial com a democracia deve estar relacionado com a liberdade de usufruto dos espaços urbanos, sem constrangimentos ou temores de violência, com ofertas de mobilidade e acessibilidade qualificadas, e em brindar oportunidades de desenvolvimento social e pessoal a todos os cidadãos, sem distinção de classe social, condição econômica, racial, religiosa ou qualquer outra que impeça uma natural integração entre os habitantes de um conglomerado urbano. Tal consideração objetiva um olhar crítico no modelo de cidade em construção, especialmente nas periferias sociais e urbanas, onde se concentra o maior nível de exclusão e carência de oportunidades de desenvolvimento. Colocar as periferias no centro das políticas urbanas constitui uma estratégia que visa reivindicar setores cuja marginalização repercute nos problemas sociais que afrontam todos os habitantes de uma cidade.

Não instrumentar intervenções que dignifiquem e integrem os setores mais vulneráveis significa abrir espaços para a ação do crime organizado, que toma conta dos grupos sociais sem perspectivas concretas de desenvolvimento. As conseqüências dessa negligência política repercutem em toda a sociedade: espaço desintegrado e abandonado pela ação do Estado é espaço ocupado pelo crime. Na multiplicação desta equação podem ser encontradas as razões dos conflitos atuais no cenário das cidades.

Arquitetura e urbanismo têm muito para contribuir na solução destes conflitos. Para isso precisa-se de gestores com coragem política para assumir a defesa do interesse geral a partir da dignificação e promoção social dos grupos mais carentes. O conceito político de reparação social deve orientar as estratégias de atuação urbana, como facilitar a acessibilidade, providenciar obras de saneamento, reconstituir os sistemas naturais, construir equipamentos comunitários para educação, saúde, cultura e lazer e melhorar as condições de habitação.

Um preconceito que merece ser superado é que pobre não merece arquitetura qualificada. Pelo contrário, só arquitetura e espaços públicos de qualidade poderão oferecer os lugares e soluções necessárias para elevar a auto-estima social, dignificar os setores carentes e iniciar um processo efetivo de reconversão e reparação social. Só assim a democracia terá condições de ser considerada plena, com benefícios para todos os cidadãos.

Arquitetura qualificada para todos, sob diretrizes urbanísticas inteligentes e sensíveis, é uma causa comprometida com a democracia, que permite reivindicar o sentido social da profissão, necessário para construir uma cidade integrada. O concurso público de projetos resulta, neste contexto, o mecanismo coerente com a democracia para escolher as melhores soluções de forma participativa e transparente.

No Brasil, na última década, foram criadas as estruturas institucionais e legais para construir cidades efetivamente democráticas. A realidade decadente destas representa o desafio de superar a democracia formal para transformá-la em real, com a concretização de edifícios, residências, espaços urbanos e obras de acessibilidade conforme com os princípios contidos no espírito das leis e ainda não realizados.

Cidade democrática se traduz em liberdade e oportunidade. Resulta impossível pensar nestas características se nos centros urbanos brasileiros existe uma maioria carente sem oportunidades de desenvolvimento, se o direito de mobilidade se transforma em uma aventura cotidiana, enquanto a classe média fica forçada a morar em edifícios defensivos e condomínios fechados por conta da violência, sem a liberdade de celebrar a cidade mediante a apropriação dos espaços públicos. Construir cidades de liberdade e de oportunidades, sem exclusão e preconceitos, é o desafio atual da arquitetura e do urbanismo e o legado necessário que se impõe a uma profissão comprometida com a dignidade e qualidade de vida urbana.

Roberto Ghione, arquiteto

0 comentários:

 
IAB Tocantins Copyright © 2009 Blogger Template Designed by Bie Blogger Template
Edited by Allan