Depredador

As cidades brasileiras estão sendo cobertas por um manto de arquitetura imobiliária repetitiva e banal, sem contemplações para as características naturais do território, do patrimônio cultural, da identidade social, da convivência civilizada, nem para a vivência dos espaços urbanos como lugares integradores das pessoas, razão de ser dos mesmos.

Essa arquitetura tornou-se elemento depredador, baseado em estruturas defensivas; dependente do automóvel; segregado do espaço público; estimulante da violência (da qual procura se defender); inimigo da urbanidade; fomentador do uso exclusivo e excludente em detrimento das misturas integradoras; ferramenta do capital para impor privilégios setoriais à custa do aprofundamento da desigualdade e da injustiça social. Conta com a cumplicidade da mídia institucionalizada, que tira partido dos benefícios das transformações urbanas de cidades consolidadas como palcos de negócios, substitutivas da convivência civilizada de cidadãos desintegrados pela própria ditadura do capital. Destrói o espaço urbano, destinando as áreas mais nobres de convivência social para depósito de carros estacionados, matando de vez qualquer intento de sociabilidade. Relega as pessoas e coloca o automóvel no centro de todas as decisões do projeto, subordinando a quantificação e qualificação dos empreendimentos ao número de vagas de estacionamento. Arrasa a paisagem urbana, configurando uma não-cidade de muros e guaritas.

Nesta situação, a figura do arquiteto encontra-se tensionada entre a construção (construção?) da cidade determinada pela obediência aos interesses do capital e a consciência profissional estimulante de uma atuação em prol da dignificação e integração social, através da projetação de lugares urbanos qualificados para a vida em comunidade.

O serviço profissional de arquitetura, no contexto do exercício liberal, deve obedecer às leis que regulam o desenvolvimento das cidades, assim como defender os interesses dos clientes e seus direitos de usufruir da rentabilidade do patrimônio imobiliário. A consideração da cidade como palco de negócios tem destruído os princípios elementares de convivência civilizada e fomentado uma consciência extrativa do capital social, constituído pela terra urbanizada e as relações humanas que lhe dão sentido.

O predomínio do conceito de cidade como bem de câmbio tem relegado e subordinado os princípios transcendentes da urbanidade e da civilidade aos temporais e passageiros da lucratividade, assim como os da solidariedade e convivência cidadã aos da individualidade e exclusão social. A arquitetura resultante deste contexto é evidentemente depredatória e contraditória com os conceitos de transcendência e estímulo da vida em comunidade, razão de ser e de atuar dela.

O arquiteto, profissional formado para construir os espaços significantes e dignificantes da vida em sociedade, passa a ser visto como depredador e dependente de um sistema perverso, que fomenta a valorização monetária do capital urbano mais que os valores transcendentes da arquitetura como bem cultural e lugar estimulante da convivência cidadã; de leis que privilegiam direitos individuais à custa da desintegração e da exclusão social; de um sistema, em definitivo, que tem provocado o caos e os conflitos que hoje padecem as cidades do Brasil.

Em tempos de crise e de reflexão, a consideração do papel da arquitetura e do urbanismo merece especial atenção. O Estado vai continuar a gastar recursos na formação de profissionais obedientes dos interesses do mercado e alienados com as frivolidades das classes dirigentes? As exigências de elaborar Planos Diretores das cidades vão continuar como mais um requisito burocrático e tecnocrático? Os gestores, políticos e instituições de classe vão enfrentar de vez os problemas das cidades brasileiras? A arquitetura vai ser considerada manifestação cultural? Os estudantes e profissionais continuarão a consumir e transferir imagens dos países desenvolvidos, alheias às realidades locais? O projeto de arquitetura e de cidade sério, reflexivo e integrado será considerado definitivamente o instrumento adequado para estimular o desenvolvimento das cidades e do país? O planejamento urbano e territorial em todas suas instâncias será assumido como política de Estado? A emoção e a sensibilidade terão vez na definição das políticas urbanas?

Arquitetura e urbanismo como instrumentos de dignificação e o arquiteto como agente de cultura são causas comprometidas com o desenvolvimento efetivo do país, marcadas por ações transcendentes, orientadas na superação da realidade depredatória que hoje arrasa as cidades e acaba com a convivência social civilizada. Assumir e difundir o papel social da profissão impõe-se como objetivo prioritário se a finalidade é reivindicar a imagem do arquiteto e iniciar um processo de real transformação e consolidação das cidades brasileiras como vetores de ordem e progresso.

Roberto Ghione, arquiteto

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