Metropolis: a ficção em pleno século XXI

Metropolis, de Fritz Lang: prenúncios dos anos 1920 sobre a metrópole contemporânea

Metropolis, de Fritz Lang: prenúncios dos anos 1920 sobre a metrópole contemporâneaReprodução: Internet.


Neste ensaio, Rosa Moura, doutora em Geografia pela UFPR e pesquisadora do núcleo curitibano doObservatório das Metrópoles, se baseia no filme Metropolis, de 1927, do cineasta alemão Fritz Lang, para comparar as idealizações da metrópole do século XXI prenunciadas pelo filme com os dias de hoje. Para Rosa Moura, são “pequenas as diferenças entre a visão antecipada e a metrópole vivida”, mostrando ainda que, na perspectiva de Fritz Lang, a previsão da metrópole do "futuro" acerta em mostrar a continuidade do controle do capital e o descontrole da sociedade sobre os bens públicos como causadores de problemas urbanos decorrentes de modelos inadequados de planejamento e gestão. Leia abaixo, na íntegra, a publicação:

Metropolis: a ficção em pleno século XXI
“O mediador entre a cabeça e as mãos deve ser o coração” – Fritz Lang
Desde 1927, a Metropolis vislumbrada por Fritz Lang para o século XXI tornou-se um marco do expressionismo alemão. Sua versão mais completa foi encontrada em 2008, num museu em Buenos Aires. Recuperada, foi apresentada no Portão de Brandemburgo, ao som da Orquestra Berlin Rundfunk Symphony, durante o Festival Internacional de Cinema de Berlin, em 2010. Anos depois, tive o privilégio de assistir a esse clássico futurista, em uma projeção acompanhada pela Orquestra Sinfônica do Paraná, sob regência do maestro alemão Stefan Geiger, no Teatro Guaíra. Ingressos esgotados, casa cheia, público em completa concentração e silêncio durante os 165 minutos do espetáculo. Ao fim, mais quinze minutos de aplausos, todos em pé. Nada jamais conseguirá expressar a emoção transmitida por aquele conjunto de músicos sob a batuta de um maestro jovem, diante das cenas de uma verdadeira relíquia cinematográfica, e por que não, de uma preciosidade aos apaixonados por entender e prever as metrópoles.
A Metropolis de Lang era governada autocraticamente por um representante do capital, assessorado por privilegiados. Entre metáforas, passagens bíblicas, resgates históricos, e de imagens do domínio da máquina sobre os seres humanos, da poluição como símbolo do progresso, o filme conta a história da conscientização do filho desse empresário a partir do encontro com uma jovem que liderava a organização dos trabalhadores na luta por seus direitos. O fio condutor, após o ocaso da metrópole, leva ao entendimento entre as classes, cumprindo a epígrafe do autor, de que a mediação entre a cabeça e as mãos deve ser feita pelo coração, e este se fez representar pelo filho único do poderoso governante.
Na Metropolis vertical e profunda, edifícios caixote altíssimos em proximidade interligavam-se por vias de circulação também às alturas, com grandes viadutos por onde passavam carros e trens, e sob os quais voavam pequenos aviões em todas as direções. Uma metrópole fruto do desenvolvimento da indústria, na qual os beneficiados pela atividade gozavam privilégios, o luxo das alturas e seus jardins idílicos. Viviam nas porções elevadas, claras, luminosas da mesma metrópole que escondia em suas profundezas a classe trabalhadora. Escravizada pelas máquinas, esgotada por turnos de dez horas contínuas, movimentos mecanizados repetitivos, em espaços claustrofóbicos, deixando suas crianças na escuridão dos subterrâneos.
O que se dirá hoje dessas imagens projetadas para o século XXI, este no qual já vivemos? Edifícios e circulação conquistaram as alturas? Se tomarmos Londres, a metrópole berço da industrialização, como exemplo, observa-se que demoraram a se impor os altos edifícios. Sua expansão foi horizontal, com vias na superfície ou underground. Algumas das torres que marcaram época no skyline da cidade, que não as das catedrais – a Victoria Tower (1855) e a do Big Ben (1859), ambas no palácio de Westminster – datam do século XIX. Depois delas, passaram-se décadas para que outras concorressem o mesmo céu londrino. Após meados do século XX, a Tower 42 e a One Canada ousaram desencadear a verticalização de partes da cidade. A primeira na City of London, região central, domínio do sistema financeiro e do business, hoje uma das áreas com maior número de lançamentos imobiliários que ocupam pequenos terrenos ou quarteirões inteiros, derrubando pérolas da arquitetura vitoriana. A segunda, em Canary Wharf, às margens do Tâmisa, área de expansão adiante da porção gentrificada conhecida por Doclands, já como expressão da financeirização urbana e do predomínio dos negócios imobiliários na reprodução e acumulação do capital, desbravando regiões distantes. Hoje o skyline londrino é marcado por objetos estranhos em várias regiões: o caco de vidro, o walkie talkie, o pepino, o ralador de queijo, a navalha e por aí vai um imenso número de altos edifícios, afastados entre si, a transformar por completo a fisionomia urbana, ao menos em partes circunscritas da cidade. Cada qual tentando marcar-se como o elemento mais exótico, mais imponente, mais notado no conjunto, e mais comentado, e de cujos topos se pode visualizar quilômetros da metrópole que se estende horizontalmente ainda baixa ao longo das curvas do Tâmisa. Expressão de poder, pelo porte e uso, desenvolvem territorialidades, tornam-se símbolos, objetos do desejo, e por que não, alvos. Outras metrópoles, em outras partes do mundo, cresceram rapidamente e densamente para o alto, ao mesmo tempo em que se esparramaram por quilômetros, horizontalmente, em viveiros servidos por autopistas. Mas, longe está a circulação por viadutos nas alturas. Hoje, a disputa pelas estreitas vias do chão por ônibus, carros, caminhões, motos e bicicletas torna o trânsito, não só o londrino, caótico e perigoso. Enquanto os atuais helicópteros precariamente confirmam o circular nas alturas, os veículos de duas rodas são marcas de um tempo que se previa transformado: não havia bicicletas na metrópole de Lang, como se elas fossem coisas “do passado”. No presente virtualizado, os modais de deslocamento já enfrentavam grandes congestionamentos e falta de áreas para estacionar. Nada diferente do que vivemos.
Pequenas são as diferenças entre a visão antecipada e a metrópole vivida. Mas uma semelhança persiste: o controle do capital e o descontrole da sociedade sobre os bens públicos, levando a problemas urbanos que parecem decorrer de modelos inadequados de planejamento e gestão, de provisão de serviços e equipamentos. Problemas que tornam o espaço metropolitano a síntese do caos, reservando, como na metrópole projetada, um lugar de conforto para poucos privilegiados enquanto os muitos trabalhadores se obrigam a reproduzir a força de trabalho nas zonas escurecidas pelas carências, movidas ao compasso da lentidão e do descaso. Se avançarmos nos desfechos dessa semelhança, inevitavelmente, como na ficção, estaríamos beirando o ocaso da metrópole. Na metrópole de hoje, o que se dirá das classes apartadas de Lang: seguem antagônicos o pensar e o fazer? A mediação encontrou um coração que os unisse? Pode se dizer que entre os detentores do capital, de branco, cabeça erguida, habitando e desfrutando as alturas, e os trabalhadores, de negro, cabisbaixos, vivendo nas profundezas, emergem hoje pessoas de todas as cores e culturas, algumas que transitam entre o capital e o trabalho, numa mediação velada, porém cedendo aos caprichos dos primeiros, na busca de migalhas do poder; outras que se mantêm excluídos até do trabalho e de qualquer tipo de proteção, mas não do sonho de cidadania. Se alguma mudança houve, fruto da organização dos trabalhadores, o sistema despótico que os oprimia na ficção pode ser visto aperfeiçoado, com estratégias mais subliminares de dominação e espoliação.
E o ocaso, já alcançamos o limite? E nesse caso, será que encontraríamos o “coração” capaz de mediar a cabeça e as mãos? Antes de iniciar o espetáculo, premeditado ou não, os músicos criaram um clima de caos urbano. Afinavam seus instrumentos desordenadamente e num volume crescente. Na plateia, o tom de vozes das conversas também foi se elevando. O ruído no espaço do imenso teatro foi se tornando ensurdecedor. Ao entrar o maestro, um jovem sorridente e apaixonado, e posicionar-se frente à tela e aos músicos, o silêncio se fez imediato e completo. Esse jogo de possibilidade de mudança, ao erguer de uma simples batuta por alguém capaz de coordenar tamanha diversidade, foi um sinal de esperança. Durante a projeção, passagens da Marseillaise impregnadas nas partituras de Gottfried Huppertz, compositor da peça sonora, também foram sinais e memória de lutas e de conquista. E os 15 minutos de aplausos emocionados, uma dose extra e revigorante de certezas e de força para continuar pensando, refletindo, discutindo e lutando, não solitariamente, para transformar nossas metrópoles em espaços para o desfrute e a convivência criativa.
Rosa Moura é doutora em Geografia pela UFPR e pesquisadora do núcleo curitibano do Observatório das Metrópoles.

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