12 de agosto de 2015 | Ana Paula Bruno
Não preciso repisar a literatura sobre o urbano para dizer que o Brasil é um país irregular. Todos nós sabemos disso. Assim foram feitas nossas cidades ou pelo menos grandes pedaços delas. Quando estudava arquitetura e urbanismo na Universidade de São Paulo, aprendi com meus mestres, nos livros, nas visitas de campo (e depois na prática profissional), que os trabalhadores urbanos, pela ação ou inação do Estado, com sua conivência, forjaram seu habitat com as próprias mãos, demarcando lotes, erguendo paredes frágeis ou reforçadas demais, com padrões que às vezes nos parecem, pelas idiossincrasias, pura desordem.
Erigidas sob conhecidas dinâmicas de exclusão socioterritorial, essas paredes se sustentam sobre fundações desconhecidas. Fundações concretas, tangíveis embora enterradas, que entre outras coisas fazem tão difícil enfrentar o problema da assistência técnica para qualificação das moradias autoconstruídas. E fundações menos tangíveis, embora concretas à sua maneira, ligadas à dimensão jurídico-fundiária das ocupações irregulares. A terra não é, nesse caso, de quem nela mora. Mas pode ser. Deve, imperativamente, ser. Ou já é, mas ainda não foi assim declarada. Mudar isso – garantir segurança jurídica na posse e, por conseguinte, cidadania, a quem construiu e permanece construindo nossas cidades – é um dos grandes desafios para o Brasil urbano. É, antes disso, obrigação com lastro constitucional de quitar essa dívida histórica nossa com nós mesmos.
Sob esse desafio assentado em fundações desconhecidas subjaz outro, seu irmão gêmeo, talvez sua sombra: a invisibilidade. Sabemos que o Brasil é irregular, mas sabemos muito pouco sobre essa irregularidade. São lugares que não estão nos mapas. São lugares que não estão, por princípio, nos registros públicos. São lugares que, embora visitados pelos recenseadores porque existem de fato, não aparecem com(o) categoria nos resultados dos censos. São lugares que estão em discursos carregados de incompreensão.
Nasci e cresci na Pompéia, bairro italianado da cidade de São Paulo, onde está o Palestra Itália e a maior concentração de palmeirenses por metro quadrado do país – o que, dependendo do (meu) ponto de vista, não é bom. Atrás da minha rua havia a Bica de Pedra. Segundo os meus, a Bica era um lugar perigoso, sinistro, habitado por traficantes. A Bica era (é) um morro que podia desmoronar a qualquer instante e soterrar nossa casa. A Bica era apavorante. Eu olhava a Bica de longe, eu simpatizava com a Bica, eu pensava “será?”, mas não me metia com ela.
Mais velha, por dever de ofício, visitei becos, bocas, me apaixonei por eles. E finalmente visitei a Bica. A Bica é um lugar – ímpar, como todos os lugares. Uma rua sem travessas que vai serpenteando o morro em mão única, sempre de cima para baixo, com casas apensadas, disformes, irregulares. Passei a frequentar a Bica. A Bica, como os becos e as bocas, passou a me frequentar. A Bica não me ocupou. A Bica, com sua força, me invadiu. Fiz da Bica meu caminho, sobre todos os outros.
Hoje, aqui de longe, no Planalto Central, procurando relevo, eu olho para essa e para outras bicas pensando em seus cheiros, ouvindo seus sons, lendo suas grafias, pensando no que é preciso. É preciso contar e encontrar seus josés, suas marias. É preciso escrever seus sobrenomes. É preciso que todos tenham papel. É preciso por acento nisso. É preciso que todos tenham voz. É preciso que todos sejam como o operário em construção do Vinícius que, ao ouvir do patrão “Não vês o que te dou eu?”, diz “- Mentira! (…) Não podes dar-me o que é meu.” Seu por direito.
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E, para não dizer que não falei de números, estima-se que haja cerca de 18 milhões de domicílios urbanos irregulares no Brasil, adotando como proxy, pela ausência de dados específicos, a variável “domicílios particulares permanentes urbanos em logradouros sem identificação”, da pesquisa “Características Urbanísticas do Entorno dos Domicílios”, do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Muito além do recorte dos cerca de 3,2 milhões de domicílios em “aglomerados subnormais”, divulgados pelo IBGE com base no mesmo Censo. Registre-se, no entanto, como caminho, o esforço de assentar a coleta de dados em bases territoriais mais consistentes, expressas nesse último número, que no futuro poderá nos dar um retrato menos borrado desse Brasil irregular.
Ana Paula Bruno é Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. Analista de Infraestrutura do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Gerente de Regularização Fundiária Urbana da Secretaria Nacional de Acessibilidade e Programas Urbanos do Ministério das Cidades. Professora de graduação e de pós-graduação.
Fonte: http://estadodedireito.com.br/sobre-construcoes-e-cidades/
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