A experiência do VLT em três cidades: Sevilla, Bordeaux e Medellín

POR FLÁVIO TAVARES BRASILEIRO E JOSÉ AUGUSTO RIBEIRO DA SILVEIRA

Edição 258 - Setembro/2015

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O veículo privado como protagonista dos modos de deslocamento e símbolo da disseminação de um modelo de transporte individual (com sua suposta eficiência e flexibilidade para resolver as demandas de transporte na cidade) vem configurando os centros urbanos brasileiros desde meados do século 20, com padrões e problemas comuns em escala mundial - como a negação do espaço livre público, das pessoas e da própria cidade, encarecendo os custos urbanos. Com essa cultura, as cidades gastam mais energia, poluem e matam mais em um sistema de transporte que realiza menos de 30% das viagens diárias na urbe.

Se analisarmos a história do desenvolvimento dos sistemas de transportes em distintas cidades, perceberemos a ausência de um modelo fixo, e a busca contínua de adaptação, muitas vezes incompleta e desequilibrada, das infraestruturas e demandas da cidade aos avanços tecnológicos. A competição no espaço entre diferentes modalidades de transporte, a distância de diferentes classes sociais no espaço e a limitada capacidade financeira, pública ou privada, para construir e reconstruir a cidade faz com que tenhamos redes de transporte urbano heterogêneas e setorizadas, conforme os interesses políticos aplicados em diferentes momentos históricos.

No Brasil, as fortes relações de dependência com a indústria automobilística e os incentivos à produção e ao uso do automóvel, e também o relativo aumento do nível de renda da população mais pobre, constituíram vetores para o incremento do já avantajado e inadequado número de automóveis em circulação. Consequentemente, teve continuidade o agravamento acelerado dos conflitos de trânsito e das taxas de acidente, que bateram recordes - 30% de aumento, desde a primeira experiência de redução de impostos, em 2009, e 200 mil feridos graves em 2014, segundo dados do Datasus -, evidenciando o papel corresponsável do poder público com a modelação de uma estrutura de cidade com padrão modal explicitamente perverso em relação ao transporte público e ao bem-estar urbano.

INTEGRAÇÃO DOS TRANSPORTES EM CENTROS HISTÓRICOS
No contexto europeu, com cidades possuidoras de patrimônio histórico de grande tradição e consolidação e centros extremamente pulsantes, a epidemia automobilística também se fez presente como um dos reflexos da Revolução Industrial. Afetou sensivelmente a dinâmica desses centros, "passando de uma abordagem em escala humana, lenta e complexa para uma abordagem moldada pelo carro, rápido e impessoal", explica Jan Gehl em Cities for people, ao contar como a cidade foi negligenciada a partir dos avanços tecnológicos urbanos e da negação de que ela, idealmente, possui uma vocação coletiva e abrangente.

Jan Gehl conta, também, como as cidades europeias conseguiram, numa virada de rumo, resgatar seus centros urbanos e históricos, e potencializar a vida urbana dos seus habitantes. "O pré-requisito para a existência da vida urbana é oferecer boas oportunidades de caminhar", recomenda. E foi assim que começou o processo de mudança dessas cidades: restringindo o acesso dos carros ao centro, transformando ruas em espaços agradáveis ao passeio e inserindo conjugações modais que pudessem compartilhar desse princípio de convivência harmônica.

Esse quadro reverteu-se num ciclo virtuoso que vem espalhando novas experimentações por diversas cidades, o que levou Ralf Monheim, um estudioso das zonas pedestrianizadas alemãs, a dizer que "uma cidade sem áreas pedestrianizadas representativas parece agora desesperadamente antiquada", no livro Proceso de peatonalización y nueva sociabilidad.

A análise a seguir busca apresentar cidades que tiveram um processo de pedestrianização recente - a partir do século 21 - focalizando o desenvolvimento do processo a partir de espaços urbanos de porte médio (até um milhão de habitantes) que possuem essa modalidade de deslocamento em plena utilização. Além das cidades europeias de Sevilha e de Bordeaux, analisamos a cidade de Medellín, na Colômbia, como exemplo de comparação mais próximo de nós, que se insere em um quadro latino-americano ainda imaturo.

SEVILHA, ESPANHA
Sevilha é a quarta cidade mais povoada da Espanha, com 702.345 habitantes. A capital da Andaluzia é conhecida pelo seu centro histórico, o mais extenso do país e um dos três maiores da Europa. A avenida de La Constituición é o principal eixo condutor ao centro, incrustrada no coração monumental e cívico da cidade, fato claramente perceptível pela presença, ao longo do seu percurso, do poder religioso (hoje a Catedral), do poder político, distante apenas uma quadra da via (atualmente o Palácio Real Alcázar), e do poder econômico (o Arquivo das Índias), que fazem da avenida uma das mais importantes na cidade, tanto do ponto de vista econômico quanto social e político.

Antes da sua reurbanização, o desenho da via constituía espaço livre e pavimento asfáltico com traçado retilíneo, abrigando quatro faixas de circulação, exceto diante da Catedral, onde se reduzem a duas faixas de circulação geral e a uma faixa exclusiva de ônibus. As calçadas não passavam de 2 m e eram ornamentadas com árvores nativas, implantadas ao longo de um gradil no piso.

A Plaza Nueva, onde culmina a avenida e ponto central da cidade, acolhia 11 terminais de linhas radiais (27% da rede da empresa municipal de transporte), oferecendo serviço a 380 mil pessoas - o que representava 74% da população de Sevilha à época, englobando uma operação de 92 ônibus por sentido de tráfego, ou seja, 1,5 veículos por minuto, além de táxis e veículos de residentes, totalizando 20 mil veículos/dia que transportavam, em média, 50 mil passageiros somente nessa avenida. Esse volume de tráfego dava claros sinais da insustentabilidade na circulação urbana, com "escurecimento progressivo dos seus monumentos e edifícios", "rua com escassa vizinhança" e "ocupação por escritórios de empresas de atividades muito variadas", segundo Alberto del Campo Tejedor, em Proceso de peatonalización y nueva sociabilidad.

Com a problemática da mobilidade como catálise de processos cíclicos de degeneração urbana, a prefeitura começou a gestar uma proposta, baseada fundamentalmente em valores como a modernização da cidade e a aposta na sustentabilidade com o objetivo de reconquistar espaços, ruas e praças. O tranvia (VLT) seria o elemento que daria voz a essas (re)conquistas, decisivo para a acessibilidade ao centro histórico de Sevilha, e que seria, de acordo com o dossiê organizado pela prefeitura, base de partida para a requalificação dos espaços públicos no centro histórico à escala do pedestre, para conseguir a continuidade peatonal sobre os itinerários principais norte-sul e leste-oeste.

O anúncio de pedestrianização da via foi seguido de mobilizações da vizinhança e comerciantes favoráveis à proposta, resistências de taxistas e divisões entre os comerciantes. Em abril de 2006 - seis anos depois de apresentar as primeiras propostas -, a prefeitura inicia as obras e a partir daí começam a insurgir movimentos mais fortes de oposição. Formou-se um coletivo com comerciantes, taxistas, hoteleiros e vizinhos que reclamavam diversas posições: confusão com as obras, taxistas pediam faixa exclusiva, comerciantes se preocupavam com a perda das vendas e, ainda, exigia-se a abertura de um processo participativo em busca de um consenso sobre o modelo de cidade ao qual se tendia.

Ainda que sob críticas, a prefeitura deu continuidade ao projeto, bem como o acelerou para que pudesse entregá-lo dentro do prazo estabelecido inicialmente. Em abril de 2007, um ano depois, a rua foi reinaugurada. Trata-se de um grande passeio em nível único, em pedras polidas, com as duas margens livres para os transeuntes e uma faixa de serviço onde é alocado o mobiliário urbano, que pode ser utilizada pelos comerciantes, no alinhamento frontal do lote, para instalação de mesas como uma extensão natural do comércio. Na mesma seção transversal viária, posicionou-se uma ciclofaixa marcada discretamente no piso com tachões metálicos com o símbolo convencional de bicicletas. Em alguns pontos da via, existe sinalização vertical alertando que esse espaço, apesar de ser do ciclista, oferece preferência aos pedestres. Na linha-eixo central da avenida, encontram-se duas faixas para a circulação do tranvia.

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Fonte: http://au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/258/a-experiencia-do-vlt-em-tres-cidades-sevilla-bordeaux-e-364143-1.aspx

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