Autogestão habitacional no Brasil: um canteiro experimental de insurgências

Experiência de autogestão habitacional no bairro Itaim Paulista, na cidade de São Paulo


Experiência de autogestão habitacional no bairro Itaim Paulista, na cidade de São PauloCrédito: Site Integra Urbano/Reprodução

Qual o papel das experiências de habitação autogestionária para a transformação social das cidades brasileiras? Neste artigo Luciana Corrêa Lago aponta as inovações e insurgências dos movimentos sociais na luta para a construção da moradia, disputando, nesse contexto, valores, visões de bem estar urbano e não somente recursos públicos. Segundo ela, a autogestão habitacional tem sido responsável, na última década, por pensar não só o direito à cidade no país, mas também o direito à produção da cidade, em formas mais democráticas de produção e o direito ao trabalho emancipado.
O artigo “Autogestão habitacional no Brasil: um canteiro experimental de insurgências”, da professora Luciana Corrêa Lago, é mais uma contribuição da Rede Nacional de Pesquisa INCT Observatório das Metrópoles para o debate sobre o Direito à Cidade no país.
Luciana Corrêa Lago é professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) e vem desenvolvendo pesquisas sobre políticas de habitação no Brasil, com foco especial no Programa Minha Casa, Minha Vida e nas experiências de habitação autogestionária originadas do MCMV Entidades e do Crédito Solidária.
Ela coordenou a publicação do livro “Autogestão habitacional no Brasil: utopias e contradições” o qual expõe o contexto político em que se deu a expansão da autogestão de moradia no país, das lutas dos movimentos sociais desde os anos 80 para a formulação do PNHIS até os programas federais pós-2003 direcionados à produção associativa, como Crédito Solidário e Minha Casa Minha Vida Entidades.


Autogestão habitacional no Brasil: um canteiro experimental de insurgências
Luciana Corrêa do Lago
O Brasil abriga hoje uma diversidade de experiências autogestionárias no campo da produção habitacional, diversidade essa impulsionada pelos programas federais Crédito Solidário e Minha Casa Minha Vida Entidades, o primeiro implantado em 2005 e substituído pelo segundo em 2009.
Esses programas não foram pensados como política de fomento a experimentações inovadoras e alternativas à produção empresarial massiva, mas como resposta enviesada às reivindicações dos movimentos nacionais de moradia que, desde o processo constituinte, lutam pela gestão democrática de um fundo nacional para financiamento da habitação popular no país. Esse fundo foi criado por lei em 2008, porém foi esvaziado a partir do lançamento do programa Minha Casa Minha Vida em 2009, cujos recursos circulam por fora do fundo como forma de facilitar e agilizar o financiamento direto às empresas construtoras.
Chegamos até agora a cerca de sessenta mil moradias no país financiadas pelos dois programas citados, que viabilizam formas associativas de produção. Podemos qualificar essa produção como marginal frente à produção empresarial de mais de um milhão de moradias, garantida por recursos públicos. Porém, essa ínfima porção do fundo público fomentou até o momento a formação de um expressivo canteiro experimental de práticas coletivas de produção habitacional, ao financiar diretamente movimentos sociais, associações comunitárias e cooperativas habitacionais como agentes produtores. Movimentos de moradia, que desde os anos 80 atuam politicamente em todas as esferas de poder reivindicando o direito à (produção de uma outra) cidade, ampliam a natureza das suas ações ao assumirem a produção de empreendimentos habitacionais com financiamento estatal.
Como agentes produtivos, os movimentos de moradia enfrentam novos embates, sobretudo com as instituições públicas envolvidas diretamente na gestão da política habitacional. A principal bandeira desses movimentos é inverter a lógica dominante de produção imobiliária nas cidades capitalistas: produzir moradias para o uso dos trabalhadores e não para a valorização no mercado imobiliário. Essa bandeira exige inovações e insurgências de diversas ordens, a começar pela reação às próprias normas impostas pelo Ministério das Cidades e pela Caixa Econômica Federal, baseadas nos princípios de eficiência da lógica mercantil e de rentabilidade (redução de riscos) financeira. No entanto, a decisão política de produzir moradias acionando o programa federal impõe um conjunto de ações por parte dos movimentos envolvidos marcado por contradições: as experiências habitacionais autogestionárias expressam ao mesmo tempo subordinação e confronto em relação às normas estatais. É nesse quadro que destacaremos algumas experimentações inovadoras e seus limites como alternativas passíveis de serem difundidas no país.
As experiências acumuladas pelos movimentos de moradia nos últimos dez anos apresentam uma diversidade grande de arranjos produtivos e, em muitos casos, os princípios do cooperativismo e da autogestão não orientam as ações dos agentes envolvidos. Encontramos variações nas formas de produção dos empreendimentos, desde a produção por mutirão em todas as etapas do processo, até a contratação de empresas construtoras para toda a obra. Em grande parte dos casos é significativo o número de trabalhadores autônomos contratados informalmente e/ou de trabalhadores com carteira assinada. Evidentemente, a forma de produção estabelecida implica um determinado grau de autonomia dos associados na gestão de seu empreendimento.
Também os processos de elaboração dos projetos e de definição do padrão construtivo das moradias apresentam variação, podendo ser assumidos pelos próprios cooperados em parceria com uma assessoria técnica ou delegados a terceiros, sejam profissionais, organizações não governamentais ou empresas. A parceria entre os movimentos de moradia e a assessoria técnica é estratégica para a ampliação do campo de possibilidades insurgentes numa experiência habitacional autogestionária e a construção dessa parceria, quando sustentada em trocas horizontais de conhecimento, é um desafio permanente. Estão em jogo, nessa relação, ideais de bem estar urbano, racionalidades econômicas e valores estéticos distintos. E quando encontramos inovações e insurgências nos empreendimentos, encontramos também um acúmulo de práticas de convencimento mútuo (ou práticas democráticas) entre os cooperados e suas assessorias.
Esse processo de aprendizagem é motivado pela luta dos movimentos de moradia pela apropriação popular da cidade para transformá-la num bem comum. Nesse sentido, diversas conquistas podem ser qualificadas de inovadoras e insurgentes.
onde está a insurgência? Nos casos de não aceitação da individualização dos contratos, da proibição de espaços comerciais, da padronização das moradias, do padrão construtivo rígido, apropriação das áreas centrais)
E onde estão as inovações no controle e apropriação popular da cidade? Na cogestão de creches, de postos bancários, na criação de cooperativas de trabalho (alimento, cultura, construção civil) como desdobramentos da experiência habitacional, no saber acumulado como agentes produtores de empreendimentos financiados e normatizados e com isso a maior legitimidade e o maior poder de reivindicação dos serviços e equipamentos e menor dependência dos assessores técnicos que estão sendo obrigados a se repensarem (um grande tema para debate a partir das experiências recentes).
Pra concluir: Nós, do campo da Reforma Urbana, tendemos a pensar o direito à cidade como democratização do acesso à cidade, do acesso aos serviços públicos, ou seja, O DIREITO A CIDADE COMO REDISTRIBUIÇÃO JUSTA DOS RECURSOS PÚBLICOS e pensamos muito pouco a produção da cidade, a produção dos serviços,formas democráticas de produção: autogestão e cogestão.
O que tem de comum nos movimentos é o entendimento, ao longo do processo de produção, da moradia como valor de uso e não como mercadoria. A possível insurgência dessas experiências está na não aceitação da individualização dos contratos, da proibição de espaços comerciais nos conjuntos e da padronização das moradias. Há uma disputa de valores, de visões de bem estar urbano e não somente uma disputa por recursos públicos. Em São Paulo, há experiências habitacionais associativas que protagonizam parceria com a prefeitura na gestão de creche, agência bancária, etc. O canteiro experimental em curso demonstra que o movimento da reforma urbana tem que ir além do campo da redistribuição dos recursos públicos. A redistribuição justa é necessária mas não suficiente para a construção de uma outra cidade. Temos que pensar em formas de conexão entre o direito à cidade e o direito ao trabalho emancipado.
  
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