Neste artigo o economista Vitor Mihessen, da Casa Fluminense, defende o
desenvolvimento econômico regional e urbano das periferias e a ideia de
descentralizar atividades como uma das alternativas para o desafio da mobilidade
urbana nas metrópoles brasileiras. “Levar o emprego e novas formas de inserção
no mercado de trabalho para áreas periféricas, majoritariamente residenciais,
pode reduzir o passivo da mobilidade urbana, sem é claro, reprimir os esforços
que visam à supressão do ônus do deslocamento, já presente na vida dos
trabalhadores”.
O artigo “Em um ano de trabalho, um mês de vida é passado no trânsito”, de
Vitor Mihessen, foi publicado originalmente no site da Casa Fluminense.
O Observatório das Metrópoles e a Casa Fluminense começam a estreitar o
diálogo e parcerias com foco na ampliação do debate sobre a Região Metropolitana
do Rio de Janeiro, e na construção de um caminho coletivo e democrático para
esse território, reunindo ONGs e coletivos, articuladores urbanos, gestores
governamentais, iniciativa privada, meio acadêmico e sociedade civil.
A análise de Vitor Mihessen é uma contribuição para esse debate.
Em um ano de trabalho, um mês de vida é passado no
trânsito
Vitor Mihessen
A conta é simples, mas seu resultado revela um drama assustador: para uma
pessoa que gasta uma hora e meia no caminho de casa ao trabalho, são três
horas perdidas diariamente que representam 66 horas em um mês de 22 dias
úteis. Em outras palavras, são quase três dias inteiros passados no trânsito
a cada mês. Para um ano de labuta, contabilizando-se um mês de férias, são
perdidos 2,75 dias a cada um dos 11 meses. Multiplicando, temos o valor
aproximado de 30 dias por ano (!) perdidos no deslocamento pendular.
É óbvio que são minutos preciosos e poderiam ser melhor empregados em
qualquer outra atividade produtiva ou de lazer. Reduzir o tempo gasto no
deslocamento não apenas traria ganhos de produtividade ao trabalhador, mas
também traria ganhos incomensuráveis em termos de qualidade de vida. O stress
do dia-dia urbano se veria diminuído e o tempo livre para diversão, família,
amigos e estudos seria, assim, ampliado. Não é à toa que as mulheres com
filhos pequenos em casa são aquelas que menos oferecem sua força de trabalho
no mercado formal, em empregos de maior qualidade, já que essas oportunidades
em geral pressupõem jornadas mais rígidas e percursos mais longos, uma vez que
se concentram nos núcleos das metrópoles.
Para continuar a refletir sobre essas questões, é importante considerar
três variáveis de análise que, inter-relacionadas, inserem-se no badalado
tema da mobilidade urbana: a participação no mercado de trabalho, ou a taxa de
atividade, em economês; a rigidez das jornadas de trabalho; e, finalmente, a
descentralização da atividade econômica.
No quesito participação no mercado de trabalho, os custos de oportunidade
dos jovens, mais particularmente das jovens mães, são mais expressivos e
simbólicos. Na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, por exemplo, uma a cada
quatro jovens de 15 a 24 anos já têm filho e 43% destas são “nem-nem-nem”:
meninas que não estudam, não trabalham e nem buscam emprego; quase a metade
desta população, segundo dados do Censo de 2010. Na média da Região, o
perfil de aparente ociosidade aproxima-se de 17% dos fluminenses nesta faixa;
são jovens que cuidam das tarefas domésticas e fazem um “bico” aqui ou um
cursinho acolá.
Não se trata de definir que o custo monetário da busca por emprego ou o
custo do tempo passado longe de casa sejam os únicos motivos para a
inatividade, mas certamente contribuem de forma significativa para a
explicação deste fenômeno e podem ser proibitivos para muitos. Nega-se assim
o direito à locomoção e à cidade, através da “imobilidade” de alguns perfis
da população. Neste contexto, a política de universalização de creches,
mostra-se um investimento imprescindível, por exemplo, para inserção no
mercado de trabalho dos chefes de família com filhos pequenos em casa. Além de
garantir uma educação de melhor qualidade das crianças, futuros jovens,
oferece principalmente às mães a possibilidade de ingressar no mercado de
trabalho, se assim desejarem.
Paralelamente ao que já é realidade, a inflexibilidade da oferta e
contratação de mão-de-obra, é tema, dentre outros autores, do italiano
Domenico de Masi, que faz apontamentos simples e revolucionários. Masi indaga
primeiro se, com o aparato tecnológico que temos hoje em dia, muitas
profissões não poderiam ser exercidas dentro de casa ou ainda através de
ambientes compartilhados, situados próximo às residências, como são os hubs,
timidamente implementados no Brasil. Indo além, a implantação de novos
regimes de trabalho, que possam incluir jornadas reduzidas e remanejamento de
horários, não impediria a realização de reuniões no ambiente interno das
empresas nem traria impactos para o desenvolvimento local do entorno, poderia
aliviar as horas de pico do tráfego e, quem sabe, elevar a ‘produtividade do
trabalho’, tão almejada em nosso país.
Este ideário recebe críticas quanto à influência do fator cultural, que
nos impede de adotar regimes tão alternativos. Mas seria eficaz no sentido de
reduzir o “comportamento de manada” que se observa nos dias úteis das
metrópoles e sobre os quais todos temos alguma reclamação a fazer. Em
especial os residentes no Rio de Janeiro, consagrado campeão brasileiro em
tempo de deslocamento casa-trabalho e que, no mundo, só perde para a área
metropolitana de Xangai, de acordo com dados do IPEA.
Aqui, o intenso fluxo de pessoas que saem da periferia, seja de municípios
próximos (ou não tão próximos), seja das Zona Norte e Oeste da cidade,
adensa o centro da capital nas horas tradicionais de trabalho e condiciona todo
o tráfego de forma unidirecional, culminando nos árduos congestionamentos e
excessos de demanda dos modais sob trilhos e das barcas. Neste sentido, o
Paradoxo de Braess para a rede rodoviária se aplica também ao transporte
público quando pensarmos que qualquer tentativa de melhoria isolada, seja
estrutural ou operacional, do sistema de transportes rapidamente se deteriora em
função de sua sobreutilização posterior. Políticas conjuntas certamente
trarão melhores resultados.
O enunciado do matemático Dietrich Braess defende que uma via construída
para dar mais fluidez aos automóveis pode piorar o desempenho global do
trânsito. Tal constatação pode ser pensada também no âmbito da pouco
conhecida e pouco aplicada Lei da Mobilidade Urbana, a lei federal 12.587, de
janeiro de 2012. De um modo geral, a legislação visa priorizar o transporte
público em detrimento dos carros, estabelecendo dentre outras, normas para uso
racional dos veículos particulares. Tem como diretriz a integração das
políticas de desenvolvimento urbano e respectivas políticas setoriais de
habitação, saneamento básico, planejamento e gestão do uso do solo no
âmbito dos entes federativos.
Neste último ponto se faz a conexão com a questão do desenvolvimento
econômico regional e urbano das periferias e a ideia de descentralizar
atividades. A distribuição geográfica da população não mais acompanha a
dinâmica da oferta de empregos na medida em que a população mais pobre que
não pôde arcar com a elevada valorização dos terrenos hoje ocupa áreas
irregulares dos morros cariocas ou foi expulsa para áreas afastadas, tão
carentes e marginalizadas quanto as favelas. A segregação socioespacial então
se estabelece pela forma de ocupação do solo, através da qual uma política
habitacional consonante com a especulação imobiliária não permite que os
antigos moradores fruam dos benefícios de uma melhoria de infraestrutura,
principalmente em termos de mobilidade.
Sendo assim, o que se defende neste texto não é o espraiamento da cidade e
sim, o uso misto do solo em toda parte. Levar o emprego e novas formas de
inserção no mercado de trabalho para áreas periféricas majoritariamente
residenciais pode reduzir o passivo da mobilidade urbana, sem é claro, reprimir
os esforços que visam à supressão do ônus do deslocamento, já presente na
vida dos trabalhadores. A proposta é que a criação de novas centralidades em
áreas já densamente povoadas leve consigo sistemas de capacitação de mão de
obra e de apoio ao empreendedorismo local, de maneira a diminuir a informalidade
dos postos de trabalhos e levá-los de fato às vizinhanças, reduzindo a
pressão sobre a rede viária urbana.
Por fim, a rota que se tentou traçar aqui, foi a de uma abordagem
alternativa ao discurso (também) unidirecional de tratar a mobilidade urbana
somente com conceitos de engenharia de tráfego e pensando o sistema de
transportes de forma isolada, quando o problema vai além das ruas. Seguimos
atrás de novos caminhos...
Vitor Mihessen é Economista, Coordenador de Informação da Casa Fluminense.
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