O arquiteto diz que o projeto olímpico do Rio de Janeiro tem uma concepção errada de crescimento urbano
ÉPOCA – O senhor faz críticas às intervenções urbanísticas feitas no Rio de Janeiro para preparar a cidade para a Olimpíada de 2016. Quais são os problemas do projeto olímpico?
Sérgio Magalhães – O projeto estimula a baixa densidade urbana. O que aconteceu no Rio? Depois de deixar de ser capital federal, a cidade cresceu três vezes em área ocupada, enquanto a população nem chegou a dobrar. Isso aconteceu em todas as cidades brasileiras, em benefício do automóvel e do ônibus. Com o fim do sistema de transporte coletivo urbano por trilhos, por trens e bondes, as cidades se expandiram porque deixaram de se organizar ao redor das linhas. Os pneus entram em qualquer lugar. Com trens e bondes, isso é mais difícil. Agora a população das cidades brasileiras tende a estabilizar. Quanto mais nos expandirmos, mais difícil será manter a qualidade de vida. As pessoas, porém, ainda estão no oba-oba do crescimento infinito. As cidades não podem se esticar infinitamente. Não temos recursos infinitos.
ÉPOCA – O que poderia ter sido planejado de forma diferente?
Magalhães – Defendi a concentração da maior parte possível dos equipamentos olímpicos no Porto do Rio. Lá, caberia tudo. Quando a candidatura do Rio foi apresentada, não havia um entendimento entre as esferas municipal, estadual e federal que possibilitaria usar aquele espaço. Nas circunstâncias, não havia essa opção. Depois que virou uma possibilidade, o certo seria levar as coisas para lá. (A maior parte das instalações olímpicas no Rio ficará longe do centro da cidade – na Zona Norte ou na Barra da Tijuca.) Para a
Olimpíada, uma grande intervenção necessária é despoluir a Baía de Guanabara. Essa medida pode mudar um destino que parece inexorável para o Rio: a expansão em direção ao subúrbio e à Zona Oeste. A baía articula a região metropolitana.
ÉPOCA – A alta densidade costuma ser associada à má qualidade de vida, poluição, engarrafamentos e outros problemas urbanos. Por que o senhor a defende como algo bom para a cidade?
Magalhães – Densidade não quer dizer edifício alto, espigão. Quer dizer mais gente num território onde os serviços públicos são viáveis. Paris é uma cidade muito densa, mas não tem prédios altos. No Rio, os quarteirões entre Ipanema e Lagoa, com prédios de cinco andares, têm alta densidade, mas alta qualidade de vida. Precisamos de cidades compactas. Assim, você cria espaços de convívio, com serviços de mais qualidade. Serviço público custa muito. Com as pessoas espalhadas, é mais difícil atendê-las. Na prática, só se atende quem tem mais poder, as áreas mais ricas. Tome o exemplo da Barra da Tijuca, no Rio, que tem baixíssima densidade.
ÉPOCA – Para a Olimpíada, o Rio está construindo os Bus Rapid Tranportation (BRTs), corredores de ônibus, com estações, apelidados de “metrô sobre rodas”. O que o senhor acha desse projeto?
Magalhães – Os BRTs são um dos modos possíveis de transporte coletivo. A Colômbia tem usado. Em Curitiba, caso mais notório no Brasil, é uma experiência bem-sucedida. Lá, os trechos mais importantes agora virarão metrô. O importante para os BRTs, como transporte de massa, é passar onde as pessoas estão – por mais óbvio que isso pareça. A Transcarioca (que ligará a Barra da Tijuca ao Aeroporto do Galeão, na Ilha do Governador) é boa. A Transoeste (que ligará os bairros de Campo Grande e Santa Cruz, na Zona Oeste, à Barra da Tijuca) nem tanto, porque passa por áreas vazias e desertas e pode estimular a ocupação de baixa densidade.
ÉPOCA – A zona portuária do Rio é uma região vazia e deteriorada no centro da cidade, um problema que ocorre em outras grandes cidades brasileiras. Como enfrentá-lo?
Magalhães – Na zona portuária há inúmeros prédios gigantescos desocupados. São áreas públicas ou de irmandades religiosas, de quando o Rio era capital federal. Há também uma infinidade de pequenos imóveis abandonados. Um imóvel abandonado deteriora a vizinhança. É uma contaminação, uma doença. Ele acaba com seu entorno. Se forem vários, pior ainda. É preciso reocupar os centros das cidades. Para que um lugar tenha vida, é preciso que algo funcione quando o comércio e os serviços são interrompidos. É a habitação que faz isso.
ÉPOCA – Qual o maior desafio para o urbanismo hoje no Brasil?
Magalhães – É a necessidade de tornar a cidade disponível para toda a população. O Brasil cresceu nas últimas décadas fazendo a cidade subsidiar seu desenvolvimento, mas nunca a tratou de forma central. Os capitais investidos em moradia foram canalizados para a indústria. Houve crescimento demográfico sem políticas de habitação. Em nome da indústria automobilística, o sistema de transporte sobre trilhos, com bondes e trens urbanos, foi desconstruído. Também veio o estímulo, nos anos 1960, ao agronegócio – mas com uma legislação trabalhista que acabou expulsando as pessoas do campo. Elas foram recebidas na cidade sem políticas de habitação, transporte e saneamento. Essas pessoas tiveram de ocupar a cidade da forma mais predatória, a ocupação de baixa densidade, em locais sem infraestrutura, criando enormes periferias. Mesmo assim, a cidade é vista como o lugar do futuro pelas pessoas. No século XXI, o desenvolvimento é pautado pelo conhecimento, pela educação, pelas invenções e pela criatividade. Tudo isso pressupõe uma vida urbana. É a cidade que dá condições para o conhecimento florescer. Para isso, precisamos democratizar nossas cidades, conquistando transporte adequado, superando nosso enorme passivo ambiental.
ÉPOCA – Que intervenção o senhor faria nas cidades brasileiras?
Magalhães – Como medida urgente, melhoraria o transporte, claro. É desumano o que as pessoas passam. Aqui no Rio, os trens poderiam ser transformados em metrô sem que seja necessário criar novas linhas. Por um preço mais barato, sem novos corredores. Os trens atendem 70% da zona metropolitana. Outro ponto seria conter a expansão da cidade. A cidade sem densidade é inviável.
ÉPOCA – Como o senhor avalia o programa do governo federal Minha Casa Minha Vida?
Magalhães – É arcaico. Em vez das famílias, o governo e as empreiteiras decidem o que fazer, onde e em que condições. As famílias deveriam ter autonomia para escolher onde e como morar – contando com financiamento. Hoje, o morador tem de aceitar o que é oferecido. Do ponto de vista urbanístico, o que é oferecido é muito antigo. São grandes conjuntos residenciais em lugares muito distantes, sem infraestrutura, o que faz a cidade perder qualidade. É importante existir financiamento e participação do governo. Mas hoje é considerado que os recursos são um favor do governo para a família. Está errado. As pessoas vivem e vendem sua força de trabalho na cidade, gastando muito dinheiro com moradia. No mundo desenvolvido, o cidadão não precisa de um novo programa de financiamento para comprar uma casa. Quando quiser, sabe que o dinheiro estará disponível: para comprar, construir, fazer o que quiser.
ÉPOCA – Como o senhor vê os novos edifícios construídos no Brasil?
Magalhães – Não gosto quando a construção tem muita autonomia. Ela só faz sentido se você olhar sua relação com o espaço público, como cada edifício se encadeia na proposta de melhorar a cidade. Essa onda de condomínios fechados é um atraso de vida. Admito que haja formas de ocupação diferentes – mas acho ruim. Eles degradam o espaço público, diminuem as áreas de encontro entre as pessoas. Muitos edifícios não estão atentos para isso. A legislação impõe parâmetros ruins, em desacordo com a qualidade de vida. Quando um prédio é obrigado a colocar nos primeiros andares a garagem, a moradia é afastada da rua. E isso cria uma vizinhança ruim. O olhar das pessoas sobre a rua – e da rua sobre elas – desaparece. O papel do edifício é ajudar o coletivo.
Fonte: ÉPOCA
http://revistaepoca.globo.com/ideias/noticia/2012/08/sergio-magalhaes-precisamos-de-cidades-compactas.html
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