A Arquitetura da Estação da Luz, artigo de Beatriz Mugayar Kühl

Professora da USP narra a história do prédio como referências do desenvolvimento de São Paulo


A Estação da Luz é referencial da maior relevância na cidade de São Paulo, caracterizando a área em que está inserida, o bairro da Luz. O edifício foi vítima, no último dia 21 de dezembro, de um segundo incêndio de grande porte – o primeiro foi em 1946 – que, além de afetar parte significativa do prédio, resultou, tragicamente, na morte de um brigadista, Ronaldo Pereira da Cruz.

Os significados e implicações da Estação da Luz são muito numerosos; ainda no rescaldo dessa tragédia cultural e humana, cabem algumas linhas sobre um dos aspectos relacionados à estação: sua arquitetura. Dados da época da construção do edifício – na revista The Building News –, apontam como autor do projeto o britânico Charles Henry Driver (1832-1900), algo corroborado pelo obituário do arquiteto, publicado em The Builder, que mostra sua expressiva atuação em obras de caráter público e ligadas à arquitetura ferroviária.

A atual estação da Luz foi a terceira a ser erigida pela São Paulo Railway (SPR) no bairro. O edifício inicial datava da época do estabelecimento da linha, a primeira a ser construída no Estado de São Paulo, ligando o porto de Santos a Jundiaí, inaugurada em 1867. Essa construção foi ampliada nos anos 1870, mas, por sua vez, também se tornou insuficiente para atender ao crescente movimento. Uma edificação maior, mais portentosa e completamente nova foi iniciada no local em 1895 e inaugurada oficialmente em 1 de março de 1901, quando já estava em funcionamento.

Há vários aspectos a ser evidenciados em relação ao edifício. Sua composição é retangular, com seu lado maior disposto de modo paralelo às vias, com dois corpos: o administrativo e de acolhimento ao público, e o das plataformas, cobertas por estrutura metálica. A composição apresenta uma dicotomia comum nas construções ferroviárias do século XIX. Por um lado, há o suntuoso edifício administrativo, de alvenaria de tijolos, que segue padrões do ecletismo e que desempenha papel representativo para atestar a importância da companhia na cidade; por outro, há o espaço utilitário das plataformas, coberto por estrutura metálica, expressão das mais emblemáticas do processo de industrialização e sua repercussão na arquitetura. O conjunto é harmonizado pelo tratamento coerente dado às fachadas perimetrais, com uso extenso da alvenaria de tijolos aparentes e com torreões que delimitam os ângulos da composição, tanto do edifício administrativo, quanto do bloco das plataformas.

Foto de 1925

As vias, que são rebaixadas em relação ao nível da rua, foram cobertas por estrutura de grande porte, com armações curvas de treliça metálica, complementadas por peças de ferro fundido, cobertas por telhas de zinco, e encimada por um lanternim. A estrutura – que foi projetada e fabricada na Grã-Bretanha com a participação de várias firmas, tanto de engenheiros consultores, como de fornecedores – vence vão de cerca de 39 metros, com comprimento de 150 metros. Pela primeira vez em São Paulo as plataformas, e toda a composição, ficavam completamente abrigadas sob uma cobertura única. Esse tipo de solução deriva de experimentações feitas ao longo do século XIX, em que se procurava otimizar a circulação dos complexos ferroviários, fazendo com que se mesclasse o menos possível os movimentos de embarque e desembarque de passageiros, bagagens e mercadorias, e que o trajeto fosse curto. Uma grande área coberta, sem pontos de apoio que obstruíssem a circulação era essencial para o bom funcionamento. A cobertura das plataformas da Estação da Luz é devedora desse processo, sendo a expressão de uma estética funcional, enquanto o edifício administrativo recebeu tratamento formal mais ostentatório e consoante a padrões do ecletismo vigentes na época.

A parte administrativa era organizada a partir de um grande hall – que é o principal acesso às plataformas – , marcado pelo corpo que sobressai na parte central da composição, no qual se articulam as duas alas do edifício (leste e oeste). Outro elemento que se destaca é a torre do relógio – tema que adquiriu importância crescente na arquitetura ferroviária – que se eleva a cerca de 60 metros acima dos trilhos, com um mostrador de 3,30 metros de diâmetro, sendo, portanto, na época da construção, visível em várias regiões da cidade. A fachada é assimétrica: ladeando o corpo central, na parte leste, há um torreão pouco mais baixo do que o corpo central, enquanto no lado oeste, predomina a alta torre do relógio.

Driver fez uso de elementos compositivos de procedência variada. O corpo central tem coroamento com origens em tratados do renascimento italiano; do mesmo modo, os vãos do primeiro pavimento são organizados essencialmente através de “serlianas”, enquanto a cobertura de inclinação acentuada, com partes amansardadas, é calcada no classicismo de origem francesa. A fachada tem forte marcação vertical e horizontal feita por pilastras e cornijas, revestidas com argamassa com colorantes, que davam um tom acinzentado (antes da última pintura concluída em 2004). Esses elementos representam a “ossatura” da composição, associada às partes de tijolos aparentes, que são o “complemento”, com tonalidade diversa, tipo de composição que retoma a diferenciação cromática entre ossa e complementa, com raízes na arquitetura clássica e muito explorada do Renascimento em diante.

Foto de 1950

Os tijolos assumem grande relevância, tanto por fazer parte do sistema de sustentação do edifício, quanto por seu papel na composição. Não vieram da Inglaterra, mas foram fabricados em São Paulo, que naquele período contava com olarias mecanizadas, segundo as informações constantes do relatório do engenheiro residente da SPR em São Paulo, Daniel Mackinson Fox. A identidade e integração dos vários elementos se dá pelo emprego de linguagem coerente no complexo, que tem sua expressividade baseada na utilização, com êxito, de materiais industrializados, sobressaindo o tijolo, o ferro e o vidro, seguindo padrões comuns a estações britânicas da era vitoriana, com interpretações para o caso específico.

A estação sofreu poucas alterações até 1946, quando, às vésperas do término do contrato de cessão da linha e de sua encampação pelo Governo Federal, ocorreu um incêndio que afetou o edifício administrativo, atingindo sobremaneira sua ala leste e o saguão central, assim como o incêndio do último dia 21, que afetou trechos semelhantes. Pelas informações até agora disponíveis, a torre do relógio, assim como no incêndio de quase 70 anos atrás, foi o elemento de contenção do fogo.

Os trabalhos de reconstrução estenderam-se de 1947 a 1951 e consideráveis modificações foram feitas, entre elas o acréscimo de um andar na ala leste. A estação passou depois por sucessivas reformas de pequeno porte e trabalhos de manutenção, além da construção de alguns anexos sem comprometer sua integridade. Mais recentemente (2004-2006), sofreu transformação vultosa, que afetou de forma mais incisiva a parte reconstruída, para funcionar como Museu da Língua Portuguesa, projeto de Paulo e Pedro Mendes da Rocha.

Antes da intervenção feita a partir do ano 2000

A Estação da Luz – pelas especificidades e qualidades de sua construção e composição, algo atestado até pelo fato de ser tombada nas esferas Federal, Estadual e Municipal; pela sua importância como marco da cidade, sendo, desde sua construção, um dos elementos caracterizadores da região e referencial da cidade; pela importância do ciclo econômico ao qual está vinculada e pelas consequências posteriores do ciclo cafeeiro para a transformação econômica do Estado e para sua industrialização em maior escala; pelo papel simbólico associado às ferrovias de ligação e articulação com o mundo exterior; pelo aspecto afetivo das numerosas famílias de ferroviários que mantêm essa identidade; pelo grande número de usuários que dela dependem para sua locomoção; pela escassez de edifícios daquele período de tal qualidade numa cidade que não poupou suas edificações no processo de transformação – pode ser considerada uma grande criação, depositária de numerosas estratificações do conhecimento e da memória coletiva.

Qualquer intervenção que nela seja feita deve, portanto, ser pautada pelo rigor dos procedimentos, levando em conta seus aspectos documentais, morfológicos, sua materialidade, suas várias estratificações e seus aspectos memoriais e simbólicos, valorizando-a como suporte físico do conhecimento e da memória para continuar a desempenhar papel da maior relevância na cidade de São Paulo.

Beatriz Mugayar Kühl é arquiteta, formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), com especialização e mestrado em preservação de monumentos pela Katholieke Universiteit Leuven, Bélgica, e doutorado pela FAUUSP. Desde 1998 é professora do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da FAUUSP. E-mail: bmk@usp.br

Algumas Referências bibliográficas: 

CYRINO, Fábio R. Pedro. Ferro e argila. A história da implantação e consolidação da empresa The San Paulo Railway Company Ltd. através da análise de sua arquitetura. São Paulo: Landmark, 2004.

KÜHL, Beatriz Mugayar. Arquitetura do ferro e arquitetura ferroviária em São Paulo: Reflexões sobre a sua Preservação. São Paulo: Ateliê / FAPESP / Secretaria de Estado da Cultura, 1998.

MAZZOCO, Maria Inês Dias; SANTOS, Cecília Rodrigues dos. De Santos a Jundiaí: nos trilhos do café com a São Paulo Railway. São Paulo: Magma, 2005.

OBITUARY. Mr. C. H. Driver. The Builder, Londres, p. 423-424, 10 de novembro, 1900.

FOX, Daniel Makinson. Description of the Line and Works of the Sao Paulo Railway in the Empire of Brazil,Minutes of Proceedings of the Institution of Civil Engineers, Londres, v. 30, p. 29-77, 1870.

RAILWAY Station at São Paulo, Brazil. The Building News, Londres, v. 80, p. 5, 1901.

TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo três cidades em um século. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.


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