“Arquitetura: Atribuição do Arquiteto”

São Paulo sediou, em 1991, o Congresso Brasileiro de Arquitetos que se realiza a cada três anos em uma cidade diferente e que reúne milhares de arquitetos para discussões, palestras, exposições e outras tantas atividades. É uma verdadeira festa da arquitetura brasileira. Ano passado foi o 19º CBA, no Recife e em Olinda, que reuniu mais de 3 mil pessoas.

Em 1991 eu estava na faculdade, já havia participado de alguns encontros de estudantes, e me mandei pra Sampa com a turma da faculdade. Fui pra lá motivado pela grandiosidade do evento, para ver de perto os arquitetos famosos apresentando seus projetos, pelas exposições e pela festa, claro. Já adianto que as festas não eram tão boas como a dos ENEAs e ELEAs, em compensação, lá eu apertei a mão do Lucio Costa. O autor de Brasília era também o homenageado do Congresso. Ele estava ali, encarquilhadinho já, sentado em um sofá de uma sala “vip” que os estudantes, obviamente, não respeitam. Entrei e apertei a mão do Lucio Costa. Segurei com delicadeza seria mais exato.

E na Lina eu dei um beijo. Pra quem não sabe quem é a Lina, é importante dizer que foi um beijo de filho, ou melhor, de neto. A arquiteta Lina Bo Bardi é a arquiteta mais importante do Brasil, mesmo que tenha nascido na Itália, veio pra cá fugida da segunda guerra e aqui produziu a sua arquitetura e nos demonstrou seu amor: “quando a gente nasce, não escolhe nada, nasce por acaso. Eu não nasci aqui, escolhi esse lugar para viver. Por isso, o Brasil é meu país duas vezes”. Bonito, né? Pois sapequei um beijo nela em um dos corredores do Anhembi, aliás eu e a toda a torcida do Flamengo... Pra registrar este fato ainda comprei um belo pôster com a reprodução de um desenho dela e tenho até hoje pendurado na parede da minha casa.

Meu pai, que também é arquiteto e sempre foi envolvido com as entidades dos arquitetos – sindicato, Federação, IAB – também estava lá, conhecia todo mundo e me apresentava todo mundo. Se por um lado rolava aquele constrangimento: “olha Fulano, este é meu filho e também vai ser arquiteto”... “seguindo a carreira do pai, hein”... e estas coisas... Por outro lado, também era super “vip” porque eu acabava conhecendo vários “cabeções” e também facilitava meu acesso à sala onde encontrei o Lucio Costa, por exemplo.

Entre estes tantos arquitetos aos quais fui apresentado, foi um que eu nunca havia ouvido falar que mais me impressionou. Pois este arquiteto, já um senhor idoso, tirou do bolso do paletó um papelzinho, feito com tipografia, onde se lia “ARQUITETURA ATRIBUIÇÃO DO ARQUITETO”. Eu recebi, meio sem graça, aquele papelzinho que parecia bilhetinho de surdo-mudo no ônibus, pequenininho e fininho. Depois que eu peguei e li ele emendou umas três ou quatro frases longas e articuladas sobre a arquitetura, sobre os arquitetos, sobre a importância da nossa profissão e sobre como ela deveria ser unida.

O arquiteto Eduardo Kneese de Mello, apesar de minha estudantil ignorância, era um destes grandes arquitetos, que, além de competente e consagrado em suas atividades profissionais, também se dedicava de maneira voluntária às questões coletivas da profissão. Naquele momento, eu, que já havia recebido inconscientemente toda uma sensibilização pela atuação do meu pai, comecei a me dar conta que a nossa profissão era um movimento coletivo, um todo maior que nossa atuação profissional diária, e de que havia algo mais no meu mundo da Arquitetura, além das aulas, do estágio e das festas da faculdade...

Se minha “consciência de classe” nasceu exatamente neste momento não importa, o que importa é que este foi o momento simbólico, quando descobri que a Arquitetura não era apenas uma profissão, não era apenas uma faculdade que eu estava concluindo para depois fazer projetos e obras e ganhar dinheiro.

A partir deste momento comecei a notar que havia muita coisa além da atividade profissional, que a Arquitetura era também uma grande causa em favor das pessoas e da cidade, de um ambiente melhor, de um mundo mais justo. Descobri que passa pela Arquitetura a solução do problema da habitação, que passa pela Arquitetura o problema da democratização do acesso às obras públicas através dos concursos públicos, que passa pela Arquitetura o planejamento de espaços mais sustentáveis e socialmente mais justos...

Desde então percebo que as lutas dos Arquitetos tem rendido bons frutos: a aprovação do Estatuto das Cidades, a criação do Ministério das Cidades, a aprovação da Lei da Assistência Técnica Gratuita, os programas de construção de habitação social, a recuperação do planejamento urbano e dos planos setoriais, entre outros. Claro que estas conquistas não são exclusivas dos arquitetos, mas sempre fizeram parte de suas principais bandeiras.

Outra destas bandeiras históricas era a criação de um Conselho profissional apenas para os Arquitetos e Urbanistas e a conseqüente saída dos arquitetos do Sistema Confea/CREA. Arquitetos gaúchos como Demétrio Ribeiro, Edgar Graeff, Carlos Maximiliano Fayet, José Albano Volkmer, entre muitos outros e apenas citando os que já não estão entre nós, acreditavam que um conselho exclusivo ajudaria naqueles objetivos e a promover a profissão e a melhorar a qualidade da arquitetura e dos serviços dos profissionais arquitetos.

Legalmente, o papel de um conselho profissional é “organizar e fiscalizar o exercício profissional e defender a sociedade”. Até a aprovação da Lei do CAU, no mês de dezembro passado, a tarefa de fiscalizar a arquitetura cabia ao CREA, que ainda é responsável por “promover e defender” todas as engenharias (civil, elétrica, mecânica, minas, alimentos, ambiental...), a agronomia, geologia, meteorologia, todos os técnicos de nível médio, etc. O Sistema Confea/CREA (Confea é nacional e CREA são os estaduais) tem sob sua responsabilidade “cuidar” de mais de 300 profissões e títulos profissionais. Será possível fazer isto com eficiência?

O arquiteto Kneese de Mello propagava, em sua célebre frase, que a arquitetura é atribuição exclusiva de arquitetos e que outros profissionais não deveriam ter o direito de exercer algo para o qual não tem formação. Era uma referência direta aos colegas engenheiros civis que, legalmente amparados pelo CREA já naquela época, aventuravam-se sobre as nossas atribuições e competências, principalmente na área do projeto e arquitetura.

Estando dentro do CREA os arquitetos não conseguiram alterar esta situação visto que são minoria. No CREA, os engenheiros e agrônomos e outros profissionais opinam sobre a arquitetura sem haver estudado arquitetura. Confundem deliberadamente reforma com restauro, acreditam que qualquer um pode fazer um plano diretor, tentam eliminar nossas competências em instalações prediais, não entendem as responsabilidades de um arquiteto de interiores, tratam o paisagismo como se fosse apenas plantio de árvores... E, pior, os arquitetos que são conselheiros do CREA também decidem questões importantes sobre as outras profissões, que envolvem conhecimento técnico e outras responsabilidades que não as do arquiteto. É como se um advogado fosse consultado sobre uma operação de amídalas.

A aprovação da Lei 12.378/2010 que cria o Conselho de Arquitetura e Urbanismo – CAU – é resultado de uma luta que tem origem em 1958, antes ainda da legislação atual do CREA (5194/63). Mais recentemente, em 1998 as cinco entidades nacionais dos arquitetos constituíram-se em Colégio Brasileiro de Arquitetos – CBA – e passam a atuar em conjunto: Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas – FNA, a Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo – ABEA; a Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas – ABAP; a Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura – ASBEA e o Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB.

As entidades discutiram e encaminharam ao Congresso Federal em 2002 o Projeto de Lei 4747 que foi aprovado em 2007, mas foi vetado pelo presidente Lula por ser inconstitucional. Porém, em seu texto de justificativa de veto o presidente determinou a redação de um novo PL com o mesmo teor para reenvio ao Congresso.

O novo Projeto de Lei do CAU foi enviado ao Congresso em dezembro de 2008, tramitou durante dois anos na Câmara e no Senado e foi aprovado em dezembro passado. Enviado ao presidente Lula, e como um de seus últimos atos, em 31 de dezembro de 2010, o presidente Lula sanciona a “Lei Nº 12.378, que Regulamenta o exercício da Arquitetura e Urbanismo; cria o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil - CAU/BR e os Conselhos de Arquitetura e Urbanismo dos Estados e do Distrito Federal - CAUs; e dá outras providências”.

A aprovação da Lei 12.378/2010 que cria o Conselho de Arquitetura e Urbanismo – CAU – não representa nossa total independência profissional. Nenhuma profissão basta em si mesma. O CAU representa apenas nossa autonomia na fiscalização e na gestão dos assuntos da nossa profissão. Nossas profissões, no mercado de trabalho, seguirão unidas e parceiras. Arquitetos e engenheiros civis, elétricos, mecânicos, etc. seguirão sendo parceiros profissionais, sócios, colaboradores, co-responsáveis em suas atribuições por projetos e obras na área da construção civil, seguirão trabalhando juntos no desenvolvimento das cidades e da sociedade.

A diferença é que, a partir de agora, teremos o CREA e o CAU, assim como acontece com médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, técnicos em saúde, que trabalham juntos na área da saúde mas cada profissão com seu conselho profissional próprio. Simples.

Os arquitetos brasileiros que já estavam acumulando avanços e vitórias na política urbana, no planejamento, na habitação, agora unidos em suas entidades nacionais, provaram que era possível também uma grande vitória para a organização da sua profissão. Muitas vezes eu já escutei de colegas arquitetos a frase feita que “a categoria é desunida e que cada arquiteto um só pensa em si”. Porém, mais uma vez este lugar comum foi desmentido pelos fatos. Unidos, os arquitetos venceram mais uma luta dentro do Executivo e do Congresso Nacional, aprovando o CAU e convencendo a todos da justeza da nossa causa.

Agora é o próprio Confea e os CREAs, que estão a buscar respostas para seu gigantismo e ineficiência, tratando de discutir a reformulação do atual Sistema a partir do nosso exemplo e espelhando-se na nossa luta.

Se a arquitetura é nossa atribuição, porque a gestão e a fiscalização da profissão também não seria...?

Homenageio o saudoso Kneese de Mello, um dos precursores desta longa luta, e à todos os colegas que, além de desenvolverem suas atividades profissionais com competência e ética, ainda tem energia para dedicarem-se às causas coletivas da profissão.

Defender a sociedade, fiscalizar a profissão e promover a Arquitetura é a missão para o Conselho de Arquitetura e Urbanismo e “Arquitetura é atribuição de arquiteto”.

Tiago Holzmann da Silva

Arquiteto UFRGS 1994, Mestre ETSAB/UPC 1996, ex-professor UFRGS e UniRitter, Conselheiro Superior do IAB, Conselheiro do CREA-RS, diretor da 3C Arquitetura e Urbanismo.

tiagohs@3c.arq.br

2 comentários:

Gilmar Scaravonatti disse...

Parabéns Tiago pelo belíssimo texto e relato!

Marcus Lima on 23 de maio de 2011 às 09:01 disse...

Valeu Tiago, a postura de um profissional é sempre respaldada pelas suas experiências estudantis, intercâmbios e a sensibilidade em valorizar tudo isso. Além disso, o IAB é um universo ímpar de ampliação de conhecimentos. Parabéns. Arq. Marcus Lima

 
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