O Porto Maravilha é negro

Autor: Rogério Daflon | Pública Data: 03/08/2016
Departamento: IAB RJ
O Porto Maravilha esconde saberes fundamentais à costura do passado do Rio de Janeiro. Para juntar os pedaços de tecido naquela área, é necessário, primeiramente, saber onde se pisa. Em 1° de março de 2011, as obras do projeto de renovação do território portuário deixaram de ser somente um conceito moderno, que olha para o futuro. Naquele dia, por força de lei, uma equipe do Museu Nacional acompanhava as intervenções de drenagem no subsolo por escavadeiras das empreiteiras que constroem o arrojado empreendimento. Os arqueólogos já sabiam o que estava por vir à superfície da rua Barão de Tefé: o Cais do Valongo, onde centenas de milhares de escravos aportaram a partir do século 18, sobre o calçamento de pé de moleque – técnica construtiva do Brasil Colônia, com pedras arredondadas de rios acomodadas sobre a terra batida. Os seixos irregulares estavam sob outra camada, mais à moda do Brasil Império, com conjuntos de blocos de granitos empilhados para receber, em 1843, a imperatriz Teresa Cristina, então futura esposa de dom Pedro II. Por cima desse revestimento, havia ainda o aterro planejado pelo prefeito Pereira Passos no início do século 20, que pôs um fim à memória do passado imperial. E escondeu também o originário holocausto brasileiro.

O Cais do Valongo foi o maior porto negreiro das Américas e, segundo o historiador Manolo Florentino, esteve em atividade nas últimas décadas do século 18 até final de 1830, ocupando uma área entre os bairros da Gamboa, da Saúde e do Santo Cristo. Nele desembarcaram mais de 700 mil escravos, vindos, sobretudo, do Congo e de Angola – pode-se dizer que o Valongo foi o ponto de convergência de 7% de todos os cerca de 10,7 milhões de escravos traficados às terras do Novo Mundo. Pelo menos mais 700 mil foram traficados para outros pontos do litoral do estado do Rio de Janeiro.

A capital, naquela época, era umas das cidades mais negras do mundo colonial. E o trecho mais agitado por essa migração compulsória era a rua do Valongo, atualmente rua Camerino. Sobre ela, como mencionado no livro 1808, do jornalista Laurentino Gomes, a viajante inglesa Maria Graham, amiga da imperatriz Leopoldina, escreveu em seu diário: “Vi hoje o Valongo. É o mercado de escravos do Rio. Quase todas as casas desta longuíssima rua são um depósito de escravos. Passando pelas suas portas à noite, vi na maior parte delas bancos colocados rente às paredes, nos quais filas de jovens criaturas estavam sentadas, com as cabeças raspadas, os corpos macilentos, tendo na pele sinais de sarna recente. Em alguns lugares, as pobres criaturas jazem sobre tapetes, evidentemente muito fracos para sentarem-se”.

Até as escavações, realizadas em 2011, o Cais do Valongo estava literalmente soterrado na memória dos cariocas. Por isso, a reportagem da Pública tentou averiguar como a cidade está lidando, cinco anos depois, com seu passado em meio ao processo de revitalização do porto, fundado num tempo em que pessoas se achavam superiores a outras a ponto de escravizá-las.

Para o pesquisador Rogério Jordão, cuja tese de doutorado discorreu sobre o próprio Cais do Valongo, a prefeitura se comporta de maneira paradoxal ao cuidar da memória da sofrida e pulsante Pequena África, como o artista e compositor Heitor dos Prazeres chamou aquela área no início do século 20. “É como se a prefeitura praticasse uma estranha dinâmica de lembrar esquecendo-se”, diz Jordão. Para ilustrar sua provocação, o pesquisador aponta para o Museu de Arte do Rio e Museu do Amanhã – este construído com investimento de R$ 215 milhões – ambos administrados pela Fundação Roberto Marinho e considerados símbolos do Projeto Porto Maravilha. “Estes dois museus começaram a ser construídos no mesmo período [da redescoberta do Cais do Valongo] e já estão em pleno funcionamento, enquanto os milhares de objetos de matriz africana encontrados nas obras [de escavação] ainda não estão disponíveis ao público”. São peças de barro, seguis [uma espécie de conta], monjolos, búzios, louças quebradas, ocutá [pedra que atrai o Orixá], como descreve Jordão em sua tese.


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