Contrariedade e complicação

“Agrada-me a complexidade e a contradição na arquitetura. Porém, desagrada-me a incoerência e a arbitrariedade da arquitetura incompetente e as complicações rebuscadas do pitoresco e do expressionismo” (1)

Robert Venturi editou, em 1966, o livro Complexidade e contradição na arquitetura (1) , hoje um ícone da cultura pós-moderna. Nele, assumia uma crítica ao idealismo purista do Movimento Moderno e reivindicava o complexo e contraditório leque de circunstâncias que determina a decisão de um projeto de arquitetura no contexto da cultura de massas, do surgimento das megacidades e das demandas programáticas. Esse leque estava reduzido, até então, a abstrações teóricas alheias da realidade, desejos e expectativas das pessoas e da nova sociedade de consumo, assim como das solicitações de planejamento e projeto do espaço urbano. “Mais não é menos” clamava, em forma de manifesto, em oposição ao “menos é mais” miesiano, em aberta confrontação contra os cânones que regiam, naquele momento, a produção da arquitetura e da cidade, promovendo a pluralidade funcional e a ambiguidade de significados.

Quase meio século após o lançamento, os conceitos de “Complexidade e contradição...” persistem e se fazem evidentes, com aparências diferentes, na circunstância da arquitetura e das cidades contemporâneas brasileiras. A simplificação e redução da análise da complexa realidade atual têm evitado um aprimoramento e aprofundamento de conceitos acerca dos problemas arquitetônicos e urbanísticos, aliada a uma cultura que valoriza o capital em prejuízo das pessoas, o beneficio setorial em detrimento do bem comum e, no campo profissional, o edifício isolado em lugar do contexto urbano. Isso implica que o conceito de complexidade – entendido como abordagem multidisciplinar e multireferenciada para a construção do conhecimento – seja substituído pelo de contrariedade, isto é, a oposição entre uma realidade susceptível de ser analisada e avaliada racional e sensivelmente e um sistema que teima e persiste um status quo de direitos adquiridos ao custo do desconforto e da exclusão de grande parte da sociedade.

O produto desta equação estabelece que a contradição, derivada do confronto naturalmente multireferenciado de variáveis intervenientes, resulte em uma evidente complicação, que mistura planos, objetivos e estratégias sem uma direção clara de até onde e sob que condições podem evoluir uma sociedade e construir-se uma cidade.

Complexidade e contradição, elementos estimulantes da criatividade, variedade e multiplicidade de propostas e significados, viraram contrariedade e complicação na vida cotidiana dos centros urbanos brasileiros. Eles se caracterizam pelo confronto entre a necessidade de planejamento racional e construção emotiva da cidade e a persistência de burocracias e tecnocracias atreladas a modelos ultrapassados, que não fazem outra coisa a não ser complicar a vida das pessoas e favorecer interesses minoritários.

A realidade demonstra constantemente as contrariedades nas cidades, que decidem por altas densidades, porém com uso exclusivo; preocupação com a violência urbana, porém sem promoção do uso misto; estímulo do transporte individual, porém sem estruturas mínimas de suporte do trânsito; espraiamento da área urbanizada, porém com abandono e decadência dos centros históricos e falta de planos de mobilidade urbana que favoreçam o transporte público; favorecimento do crescimento econômico e do consumo, porém com exclusão e diferenciação social; gastos com equipamentos urbanos destinados a grandes eventos, porém com falta de investimentos em serviços básicos; intervenções de impacto na estrutura urbana, porém sem planejamento de longo prazo; estímulo de ações de suposto desenvolvimento urbano, porém entregues aos interesses da iniciativa privada; promoção do crescimento do mercado imobiliário, porém com edifícios segregados e excludentes.

Tais contrariedades se refletem em inúmeras complicações da vida cotidiana de grandes grupos sociais, que sofrem com transporte público deficitário, imobilidade, espaço urbano decadente, paisagem urbana repetitiva e alienante, infraestrutura e saneamento deploráveis, exclusão social, violência urbana e todos os inconvenientes apresentados pelas cidades sem planejamento e com ações na estrutura urbana promovidas pelo improviso e interesse circunstancial.

Tanta contrariedade e complicação têm transformado as cidades em palcos de protestos e reivindicações de uma sociedade descrente dos atuais sistemas de condução e decisão das políticas urbanas. A sociedade reclama transparência, responsabilidade e racionalidade no destino dos recursos públicos, assim como dignidade e urbanidade na construção e recuperação dos espaços urbanos perdidos para grupos de poder atuantes em conluio com o sistema político.

O momento é de crise e também de oportunidade para a arquitetura e o urbanismo demonstrar a capacidade de transformar uma sociedade até agora adormecida sob a ilusão de um crescimento baseado na individualidade, egoísmo e exclusão. Tempo heroico de mudanças, que terão sua manifestação na construção de cidades mais justas, inclusivas e civilizadas. Tempo de esperança e de renovação do compromisso social da arquitetura e do urbanismo, adormecido sob o falso progresso das urbanizações fechadas, dos edifícios excludentes, do florescimento da indústria automobilística e do caos urbano revelado na contrariedade e na complicação em que afunda a sociedade contemporânea.

Notas:

1- VENTURI, Robert, Complejidad y contradicción en la arquitectura. Editorial Gustavo Gili, S.A, Barcelona, 1974. Edição original: Complexity and Contradiction in Arquitecture. The Museum of Modern Art, New York, 1966.

Roberto Ghione, arquiteto

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