Todas as ações e decisões humanas manifestam, consciente ou inconscientemente,
um sistema de ideias, valores e interesses que existe na cultura de uma
sociedade e que determina a eleição dos caminhos de atuação para resolver as
necessidades de desenvolvimento social e a construção dos espaços urbanos
públicos e privados. Em uma sociedade existem, naturalmente, muitos e variados
sistemas que se encontram em permanente disputa entre grupos de poder, que
pretendem manter o domínio de situações existentes, e outros que pretendem mudar
para novos rumos de ação. Estas disputas constituem a base da ação política e do
sistema democrático para a escolha das opções coletivas mais convenientes para o
desenvolvimento social.
A arquitetura e o urbanismo constituem uma das
evidências maiores das ideias, valores e interesses que permeiam os objetivos
sociais e políticos de uma sociedade. Edifícios e intervenções urbanas equivalem
às pontas de icebergs de evidentes e ocultas intenções e jogos de poder,
verdadeiros fetiches que expressam as ideologias de diferentes grupos que
pretendem assumir o controle social e urbano. Conservador ou progressista são
atributos que podem ter significado variáveis, segundo o contexto de análise e
os interesses envolvidos. Muitas cidades brasileiras experimentam hoje debates
acalorados à luz de problemas urgentes e emergenciais que tomaram conta de
grandes centros urbanos, que confrontam opções de democratização dos espaços
públicos ou manutenção de privilégios ancestrais traduzidos em condições
vergonhosas e insustentáveis de imobilidade, exclusão social, violência,
insegurança, deterioração constante dos espaços públicos, agressão ao patrimônio
cultural e ambiental e perda progressiva de qualidade de vida
urbana.
Karl Mannheim escreveu, em 1929, o hoje clássico
livro intitulado Ideologia e Utopia (1), no qual, sob visão marxista da
realidade, diferencia ideologias, como aqueles sistemas de ideias que pretendem
perpetuar o status quo dos grupos instalados no poder, das utopias, como aquelas
ideias que pretendem mudar a realidade para outra ordem de existência. Este
conceito pretende superar a noção de u-topo (não tempo e não lugar) da concepção
clássica de Tomás Moro, para colocar as utopias em uma atitude proativa e
transformadora.
Na atualização destes conceitos e sua aplicação à
realidade das cidades brasileiras, é possível detectar atitudes que persistem
comportamentos arraigados profundamente na consciência dos grupos sociais
dominantes, que se traduzem na versão contemporânea da ideologia da
"casa-grande" (magistralmente descrita por Gilberto Freyre) em condomínios
fechados e edifícios de apartamentos organizados em estruturas defensivas, e da
correspondente "senzala", que condena a morar em periferias carentes de
condições mínimas de urbanização ou em terrenos invadidos não aptos para a
moradia humana. A magnitude dos problemas sociais derivados desta situação, em
termos de violência urbana e tragédias recorrentes causadas por fenômenos
climáticos que afetam a sociedade em conjunto e colocam e xeque a reputação de
políticos e autoridades, reavivaram a necessidade de realizar planejamento
urbano e territorial, conceitos básicos de racionalização da ocupação do
território que até hoje estão banidos da cultura política e urbanística
brasileira. A cultura do improviso, de resolver em função dos tempos políticos e
de descontinuidade nas políticas urbanas, configura a ideologia que deteriora as
cidades e que impõe o planejamento de médio e longo prazo como utopia reclamada
por grupos que se consideram progressistas na concepção do desenvolvimento
urbano.
Outra visão do mesmo problema permite detectar a
ideologia da exclusão, manifestada por uma parte privilegiada da sociedade que
persiste em atitudes de coronelismo e impõe arrogantemente supostos direitos,
sem a menor consciência da divisão social causada e dos problemas da violência
que retornam e comprometem a própria segurança. A integração social constitui a
utopia de quem imagina uma sociedade menos preconceituosa, mais humanizada,
democrática e participativa, com a consequente expressão em espaços urbanos
estimulantes de uma convivência social plena.
Os privilégios da sociedade dominante conduzem
também a favorecer o culto ao automóvel, transformado em fetiche de poder e
posição social, assim como a estrutura de mobilidade urbana em função dele.
Abertura e alargamento de vias de conexão e construção de viadutos (melhor se
forem com estruturas estaiadas, visíveis e provincianamente assumidos como
imagem de progresso), túneis e outras obras de engenharia do trânsito são as
manifestações da ideologia que privilegia um meio de locomoção absolutamente
irracional em detrimento dos espaços urbanos estimulantes da vivência social,
enquanto se posterga indefinidamente a construção de sistemas eficientes e
dignos de transporte público qualificado, verdadeira utopia que desafia às
atuais gestões municipais.
As imagens de progresso, traduzidas em edifícios
de arquitetura pasteurizada e consagrada pela mídia globalizada, alheios à
cultura do lugar e vendidos como paradigma de modernidade e pertencimento
provinciano ao mundo desenvolvido, constituem a ideologia dos setores que se
beneficiam com o lucro do crescimento imobiliário à custa de uma cidade
fragmentada e excludente. Alternativas criativamente expressivas das culturas
locais, adaptadas às condições climáticas e urbanísticas, estimuladoras da
integração social e construtoras dos lugares da cidade, constituem a utopia de
quem acredita em modelos superadores de desenvolvimento urbano e da arquitetura
como expressão cultural da sociedade.
As permanentes e obscuras negociatas na definição
e contratação de projetos e obras de interesse social através da gestão pública,
amparadas em relações de amizade, compromissos assumidos, urgências eleitorais
ou questionáveis notórios saberes, determinam uma ideologia de procedimentos
encravada nos processos de construção da cidade. A reação a estes métodos de
ação propicia a utopia da transparência metódica na distribuição dos recursos
públicos e da transparência conceitual na realização dos melhores projetos e
obras destinados a edifícios e espaços públicos. O concurso público de projetos
surge como bandeira reivindicada por instituições partidárias de procedimentos
democráticos e participativos eficientemente organizados com intervenção de
jurados de competência e saber comprovados.
Como as comentadas, inúmeras utopias permeiam os
anseios da sociedade contemporânea, que encontra nas redes sociais um veículo
eficaz de contato e consenso acerca dos mecanismos e instrumentos mais
favoráveis para resolver persistentes problemas urbanos que a afetam
cotidianamente. A sociedade tem demonstrado, em muitos casos, possuir critérios
mais adequados à realidade dessas problemáticas do que muita legislação,
burocracia e tecnocracia que travam a construção da cidade desejada, encobrem as
manobras e favorecem as ideologias dos grupos de poder. A ascensão econômica das
classes sociais historicamente oprimidas implica também a ascensão educacional,
a compreensão dos problemas sociais e a consciência dos direitos e oportunidades
para reclamar por uma realidade melhor. As cidades brasileiras encontram-se em
uma interessante encruzilhada em que as persistências anacrônicas se enfrentam
aos desafios que permitem vislumbrar tempos de mais racionalidade no
planejamento das cidades e mais emoção nas soluções dos espaços e edifícios
merecidos por uma sociedade cada vez mais esclarecida.
1-
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Zahar Editores. Rio de Janeiro,
1976
Roberto Ghione, arquiteto
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