As
práticas da arquitetura e do urbanismo devem ser realizadas no marco da
legislação vigente, multiplicidade de normas que determinam o uso e
ocupação do solo, condições de habitabilidade e segurança, formalização
dos edifícios, acessibilidade, integração social, etc. Tudo isso para
construir a denominada "cidade formal" ou "cidade legal", dentro do
sistemas de convenções orientadas a favorecer o bem estar geral e
promover a construção dos espaços públicos e privados estimulantes de um
desenvolvimento social sadio e civilizado, expressão da cultura
contemporânea.
Na realidade das cidades brasileiras, o processo não é bem
assim, simples e linear. A complexidade do fato urbano inclui inúmeras
formas de configuração, algumas em acordo com as leis vigentes, muitas
outras espontâneas, seguindo padrões de assentamento determinados pela
própria necessidade de habitar perto de alguma fonte de subsistência e
convívio cidadão, muitas vezes em locais e condições não aptas para a
moradia humana. Esta situação determina a convivência em um mesmo espaço
urbanizado de duas manifestações diferenciadas, uma denominada de
cidade "formal" ou "legal" e outra de cidade "informal" ou "ilegal".
As diferenças de configuração urbana entre elas são também a
manifestação das violentas desigualdades sociais e de duas culturas
aparentemente irreconciliáveis, apesar da total dependência entre uma e
outra. A sociedade precisa de ambas para sobreviver, embora as políticas
públicas e a ação profissional "formal" estivessem durante longos
períodos (e ainda persistem) orientadas a favorecer uma em detrimento da
outra. Esta circunstância acentua as diferenças e estimula a
desintegração social com consequências que repercutem em um dos graves
problemas da cidade contemporânea: a sensação de violência que perturba o
convívio urbano civilizado e integrado entre os diferentes componentes
da
sociedade.
Diferentes formas de uso e apropriação dos espaços são também
identificáveis nas duas situações. Na cidade "formal" resulta evidente a
predominância de critérios de individualidade, privacidade, egoísmo,
arrogância, exclusão e reserva, enquanto na cidade "informal",
prevalecem atitudes de comunidade, solidariedade, participação,
autoajuda e descontração. A materialização das arquiteturas e dos
espaços identificam os dois modos de vivência social: edifícios fechados
e defensivos no primeiro, construções abertas ao espaço público,
descontraídas e participativas no segundo. Resulta contraditório
comprovar que os valores da civilidade e da convivência social resultam
mais efetivos nas urbanizações
"informais" e "ilegais", enquanto na cidade "formal" e "legal" tende a
imperar a autodefesa e o "salve-se quem puder".
O uso e apropriação dos espaços públicos, ainda em condições
degradadas, resulta natural em favelas e bairros populares, orientados
para a celebração espontânea da cidade e a integração social entre os
moradores. Na cidade legal, ao contrario, as estruturas defensivas
segregam os habitantes, enquanto as paisagens urbanas fomentam o medo e
desestimulam qualquer intento de convívio social e uso civilizado dos
espaços.
As soluções da arquitetura e do urbanismo nem sempre
consideram e respeitam os modos de vida. A total dependência do mercado
imobiliário e ausência de planificação urbana integradora e definidora
de espaços públicos estimulantes da vivência social, levam ao exercício
profissional subordinado à construção de empreendimentos defensivos e
antiurbanos. Nas periferias das cidades, a resposta oficial às
necessidades das pessoas carentes são estruturas impessoais, em chamados
bairros ou conjuntos habitacionais que não conseguem reproduzir a
qualidade dos espaços públicos dos assentamentos informais. As unidades
padronizadas e repetidas, sem a mínima preocupação de criar espaços
estimulantes do convívio social,
são a resposta "legal" e "formal" para a demanda de uma população que o
sistema de produção desvaloriza e desconsidera em seus hábitos de
relacionamento e ocupação dos espaços. Programas de moradias populares,
como o Minha Casa Minha Vida, disfarçam um objetivo social para resolver
e beneficiar a produtividade, o lucro empresarial e a dinâmica na
economia, ao mesmo tempo que postergam a integração social, degradam a
cidade e criam bombas relógios de consequências imprevisíveis.
Existe uma grande contradição entre as políticas e planos de
desenvolvimento das cidades - que pouco propiciam a construção de
espaços estimulantes de convivência social - e a situação que acontece
naturalmente nas ocupações espontâneas e informais. Excesso de
legalidade e formalidade nos padrões concebidos, assim como um
persistente preconceito da sociedade "esclarecida", estão acabando com o
uso dos espaços urbanos, relegando-os à sociedade "marginal", que
oferece verdadeiras lições de convivência e apropriação dos espaços
públicos, esquecidas pela atividade profissional atrelada às exigências
do mercado.
Legalizar e formalizar a cidade informal, dignificar suas
condições de moradia, qualificar os espaços públicos, preservar as
modalidades de convivência neles, transferir esse espírito para a cidade
formal, estabelecer condições de legalidade que estimulem o uso e
apropriação do espaço urbano são, dentre outras, estratégias viáveis
para a integração social entre formalidade e informalidade, condição
essencial para atingir níveis mínimos de civilidade e qualidade de vida
urbana.
Roberto Ghione e arquiteto e Diretor do IAB/PE
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