Dona
de casa insatisfeita, com filhos adolescentes; crianças brincando em
quadra de edifício residencial e entre automóveis estacionados na
garagem; corretor imobiliário (descendente de família que viveu tempos
melhores) apaixonado por mulher aparentemente insegura; adolescentes na
descoberta do amor; empregadas domésticas representantes de uma tradição
de servidão; familiar da empregada feliz por acessar ao emprego
formalizado; flanelinhas, trambiqueiros, entregadores e personagens de
rua; homem que resiste em morar em casa sem grades; vigias de rua;
imigrantes vindos do interior decadente em busca de tempos melhores;
favelado tentando a sobrevivência; senhor de engenho em declínio;
familiares do senhor de engenho que tentam perdurar poderes e benefícios
extintos, mas que ainda
persistem nas consciências de opressores e oprimidos...
O filme de Kleber Mendonça Filho O som ao redor retrata
fielmente a classe média de Recife. Os personagens habitam sem pena e
sem glória uma cidade reclusa e fechada, em espaços insignificantes como
as próprias vidas, como a própria cidade. Os edifícios fechados e
defensivos, as casas que ainda resistem à especulação imobiliária, o
destino de morar trancado em apartamento, as decorações cafonas, os
edifícios caixão, as ruas lotadas de carros durante o dia, desertas
e inóspitas às noites refletem vivências cotidianas entediadas e sem
graça, temerosas e inseguras, só quebradas pela manifestação de algum
habitante de rua que oferece algumas faíscas de criatividade e humor
popular, cada dia mais abafadas por uma sociedade careta e formalista.
A
cidade determina os comportamentos dos habitantes, que modelam o
caráter social em função dos espaços que ela oferece. E a oferta é
triste: o Recife dos bairros novos, visualizado na tela grande, é menos
estimulante que na realidade. As diferenças entre a cidade antiga (nunca
mostrada no filme) e a nova são abismais. Resulta difícil imaginar que
um povo morando nessas condições tenha a criatividade e a explosão do
carnaval. Ou talvez essa explosão seja a reação a tanta rotina e
irrelevância. Ou talvez seja manifestação dos bairros populares, com
habitantes mais felizes que os da cidade da especulação imobiliária. Um
episódio de reunião de condomínio revela a mediocridade e futilidade que
determina a vida desses personagens, recriados da própria
realidade.
O
filme só transcorre, em diferentes situações de vida dos personagens.
Aponta sutilmente a cultura ultrapassada e persistente de senhores e
servos, as rotinas de mandar e obedecer, de determinar ou cumprir
resignado o destino traçado por uma sociedade que vive o Século XXI
atrelada a conceitos e poderes de tempos passados. Não tem narração
explícita. Ele se desenvolve em enredos paralelos, realismos que
identificam os moradores da cidade, entre os que se destacam o amor sem
final feliz do corretor imobiliário e sua moça, a obsessão (e
insatisfação) da mãe que não consegue dormir por causa dos latidos do
cão do vizinho e a "invasão" dos vigias que se intrometem na vida dos
vizinhos de uma rua.
O final, a vingança de um fato antigo, rebarbas de uma época de coronelismo que ainda perdura, retrata um desenlace tão banal quanto as vivências e arquiteturas exibidas. O som da morte é o mesmo som da festa. Tudo se mistura e confunde atrás das grades da vida cotidiana: a violência implícita, a especulação, o consumismo, o medo, o tédio, o racismo, as ameaças, a inveja, a arrogância, a delinquência. Poucas manifestações de felicidade, muito estresse de uma vida pouco merecida nos espaços desolados e pouco estimulantes que oferece a cidade ao redor.
Roberto Ghione é arquiteto e diretor do IAB/PE
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