Para a nossa classe media desvairada o ideal
é o isolamento, os condomínios horizontais fechados com cercas onde não entram
estranhos, torres habitacionais defensivas como as de San Gimigniano, na Itália,
e se possível integradas a shoppings
e escritórios para o morador não ir à rua. Nesses cárceres semiabertos eles compram,
efetuam transações bancárias, assistem filmes e leem jornal pela internet. Se o
shopping não tem restaurante
ordena-se pelo telefone. Se o amor mecânico não basta, ordena-se pela internet E
quando for imprescindível ir ao aeroporto ou ao fórum usa-se um carro com película
escura anti-arrombamento ou um blindado de terceira mão. Com essa escusa as
prefeituras não cuidam dos passeios, dos espaços públicos e dos parques. Dirão
que é uma questão de segurança. Não creio que seja só isso.
Torres de apartamento e de escritórios têm
sido assaltadas por pseudotécnicos de manutenção e seguranças. Condomínios horizontais
de luxo são roubados por “mauricinhos” filhos dos próprios condôminos, em Lauro
de Freitas. Como se explica, por outro lado, os elevadores separados, a preferencia
por apartamentos um-por-andar, os personal
trainers e os óculos escuros de dia e de noite? Chacrinha, o nosso McLuhan debochado
da comunicação, dizia que quando ele ia a uma discoteca, o burguesão, dispensando
apresentações, se levantava e o convidava para tomar uma dose de scoth. O mesmo numa gafieira, onde o
passista o chamava para a pista ou para tomar uma bia. Mas quando ele entrava em um ambiente e as pessoas o olhavam e
baixavam a cabeça ou o olhar sabia que estava em um reduto da classe média. Essa
classe é sem duvida a mais preconceituosa e segregacionista. Mas ela pode, em certas
circunstancias, baixar a guarda.
Passei o final do ano numa pequena vila, hoje
badaladíssima. Curiosamente ali ocorria exatamente o contrario. Na rua direita,
ligeiramente torta, não havia carros, as pessoas caminham pelo leito da rua de
sandálias de dedo olhando vitrines, parando para bebericar, comer e flertar,
cumprimentando estranhos, inclusive vizinhos que nunca cumprimentavam. A
meninada e os cachorrinhos de madames corriam soltos sob os olhares relaxados de
seus donos. No interior dos bares e botecos a velha classe média, incluindo os
“novos pobres” - comerciantes falidos, pensionistas ou demitidos de grandes
empresas - e a emergente classe média do primeiro carro e viagem de turismo
compartilhavam a mesma mesona consumindo a branquinha na falta do viski.
Nessa vila nenhum morador foi despejado e
hoje são pequenos comerciantes, vendedores de lojas, guias turísticos, garçons,
músicos e cantores. Através das portas e janelas das pequenas casas de suas
travessas via-se a televisão e o computador antenados no mundo, A violência era
zero e a classe media dava férias por um par de dias a seus preconceitos, redescobrindo
furtivamente a urbanidade.
Levei algum tempo para entender, mas descobri que este milagre se devia
aos que os romanos chamavam de genius
loci, ou mago do local. Ele está ali há pelo menos 550 anos. É o espirito
tribal de uma aldeia caeté que precedeu os Ávilas, mistos de bárbaros e nobres,
mas nunca classe média, na definição de Chacrinha. Há 40 anos esse espirito se
encarnou num empresário-visionário, que trocou uma próspera empresa na selva de
concreto paulistana pelo que restou desse latifúndio paradisíaco de 300 km² e
12 km de praias. Misto de hoteleiro e loteador, ele conseguiu manter ali uma
tradição de urbanidade já perdida na grande maioria de nossas cidades, não
obstante o consumismo desenfreado. Essa é a aldeia global que poderíamos ser,
mas preferimos criar cercas nos condomínios e usar viseiras de burros e óculos
escuros para evitar os nossos vizinhos.
Não passei o carnaval na Praia do Forte, mas
imagino quantos preferiram a informalidade daquela vila livre das convenções sociais
aos camarotes de acesso restrito, aos currais com abadás de marca, seguranças e
cordeiros de aluguel, da capital. Pena que depois do carnaval, ou do final de
semana, tudo volte ao “normal”.
Paulo Ormindo de
Azevedo, arquiteto e urbanista, conselheiro do CAU/BR
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