O modelo consumista que caracteriza a sociedade contemporânea possui uma extraordinária capacidade de reinvenção e de transformação de acordo com as circunstâncias, assim como de neutralizar os ataques ao sistema mediante a conversão em mercadoria de todas as manifestações em contrário. Figuras marcantes do Século XX críticas do sistema, como Che Guevara, John Lennon ou Albert Einstein, dentre muitas outras, foram imediatamente neutralizadas e transformadas em objetos de consumo por um sistema implacável, unidirecional e avassalador.
Consumir é a razão de ser e de agir do nosso tempo. Todo ser humano é um comprador em potência, assim como todo objeto, sonho, prestígio, acontecimento ou criação é uma mercadoria. As leis são inexoráveis: o toma lá, dá cá é a filosofia empírica que move o mundo contemporâneo. Ter ou não ter é a versão atual do dilema de quem decide aceitar ou criticar e ficar à margem do sistema. Os objetos de consumo são os fetiches de poder e símbolos de sucesso e ascensão social.
Em um mundo marcado por estes comportamentos e valores, as políticas públicas são engolidas pelo sistema e as decisões em representação do interesse geral passam pelo filtro da comercialização e do lucro de gestores, intermediários, prestadores de serviços e funcionários para atingir supostos objetivos sociais. Os conceitos transcendentes da política e do serviço à comunidade são deturpados pela ambição dos gestores, e o bem estar e felicidade das pessoas se traduz na capacidade de consumir. Neste contexto, não resulta estranha a desvalorização dos princípios da arquitetura pública, submetidos aos interesses de intermediários e lucro de empreiteiras. Tudo isso, naturalmente, dentro da legalidade determinada pelo sistema.
Os estrategistas do mercado depararam-se, recente e inesperadamente, com objetivos atingidos além do esperado. As novas classes emergentes, assim como as ainda submersas – porém, conectadas – transformaram-se em novos consumidores. Este “trunfo” do mercado surpreendeu aos próprios promotores e provocou pânico: como assim?! Favelados de Nike, Lacoste e Adidas?!
As compras de produtos exclusivos e suntuosos por favelados não tinham sido previstas nem imaginadas. Também não foi imaginada a “invasão” dos templos do consumo das classes média e alta. Assim como os produtos de grife são um meio de se sentir pertencente a um determinado grupo social (neste caso, às classes dominantes), a ocupação dos espaços de consumo é uma demonstração do exercício cidadão de usufruir deles; a oportunidade de vivenciar e participar dos espaços e consumir os produtos assistidos diariamente nas telenovelas.
O conceito neoliberal de uso dos espaços na cidade com separação e discriminação de classes sociais começa a ser questionado pelos grupos que não querem mais se sentir excluídos. Para horror das classes ditas privilegiadas, a invasão dos shoppings centers por favelados, vestindo roupas de marca e usando acessórios sofisticados, representa uma demonstração e reclamação do direito democrático de usufruir das prerrogativas e das exclusividades. O modelo de cidadania excludente, marca deste tempo nas cidades brasileiras, é posto em crise e coloca em debate as novas solicitações das classes emergentes: além do pão e circo, agora reclamam grife.
A tão desejada integração social e apropriação democrática dos espaços chegam, nas cidades brasileiras, pelo caminho e através dos atores sociais menos imaginados. Quem pensaria, algum tempo atrás, que o capitalismo neoliberal provocaria sentimentos de liberdade e de exercício da cidadania dos grupos tradicionalmente excluídos? Ou que as reivindicações sociais fossem o acesso às grifes do mercado? Ou que os shoppings centers fossem os palcos dessas reclamações sociais? Ou que as praças de manifestação fossem substituídas pelas de alimentação? Perante a situação imprevista, como reagirá o sistema? Qual será sua reinvenção ou transformação para absorver as novas demandas?
Triste destino o de países emergentes como o Brasil, em que o consumo promovido desde os setores mais diversos deturpa os valores transcendentes da sociabilidade e da urbanidade. Enquanto educação, cultura e civilidade continuarem a ser substituídas por pão, circo e grife, resultará difícil promover qualificação urbana nas cidades. De que vale reivindicar o espaço público, se o que a sociedade emergente reclama é o direito de usufruir dos shoppings?
Os recentes casos de rolezinhos são demonstrativos dos desejos da sociedade carente. Desejo de novos ricos, de se lambuzar até ficarem saciados de consumo, tomara que até a tomada de consciência da futilidade de tais atitudes. Só educação, cultura e dignidade urbana, em longas e fortes doses, são os antídotos perante tal situação. E esperar, talvez daqui a uma ou duas gerações, que a sociedade brasileira amadureça, e ai sim, as cidades se tornem urbanizadas e civilizadas.
Roberto Ghione , arquiteto
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