O PARADOXO BRASILEIRO
Nos quinze anos que morei em Chicago conheci muitos brasileiros. Vários deles eram também estudantes de pós-graduação e também moravam na mesma quadra que eu, em prédios da autoria de Mies van der Rohe. Fiz boas amizades que cultivo até hoje.
Havia uma característica neste grupo que me surpreendia muito e que demorei anos para entender. Essas eram pessoas bem educadas que sempre me trataram muito bem e que eram atenciosos para com os outros. Eram bons anfitriões e generosos em suas recepções aos amigos. Se comportavam com cordialidade e cooperação quando iam à minha casa (cooperação em terra que não tem empregada doméstica é uma contribuição importante!). Quando íamos a restaurantes, essas pessoas faziam questão de pagar a sua parte da conta - e às vezes queriam até pagar a conta inteira.
Em outras situações, porém, essas pessoas tinham um comportamento que me era incompreensível. Um exemplo claro foi um dia que saímos - em grupo de uns dez - a passear pelo Loop (o centro da cidade). Assim que iniciamos a caminhada alguém que estava lá havia alguns meses decidiu comprar o jornal (o exemplar de domingo do Chicago Tribune é uma massaroca de muitos cadernos) e perguntou se mais alguém "queria" jornal. Explicou então aos recém-chegados que nos Estados Unidos ao se colocar a quantia certa para o preço do dia, o armário inteiro se abre e o cliente "podia" pegar "quantos jornais quisesse". Para minha surpresa acharam a ideia ótima e tiraram uns quatro jornais. Não se passaram dez minutos e dois dos pesados jornais "extras" foram jogados no lixo (exatamente na esquina circular da Carson Pirie Scott, o excelente edifício de Louis Sullivan, ricamente ornada com desenhos em painéis de ferro fundido).
Durante muito tempo refleti sobre o que gerava esse "Paradoxo Brasileiro". O que faria com que pessoas com conduta honesta perante os outros constantemente não pensassem duas vezes em fazer coisas como roubar jornais, mesmo quando nem estavam com vontade (muito menos necessidade) de ler.
Depois de alguns anos cheguei a uma conclusão que comprovo até hoje. O brasileiro típico encara a honestidade como um comportamento contextual. Dentre outros contextos, há a honestidade pessoal e a honestidade institucional. As pessoas "do bem" cultivam a honestidade pessoal desde criancinha. Muitos evitam até vender um carro usado a um vizinho para não correr o risco do vizinho achar que foi ludibriado pela venda. Quando saem em grupos, fazem questão de pagar a sua parte da conta e muitas vezes insistem em pagar a conta de todos. São corretos, gentis e generosos com os seus amigos e familiares, e com o próximo que está próximo.
Quando se trata de interagir com uma instituição, porém, o parâmetro é outro: usa-se o parâmetro da honestidade institucional, onde muitos desvios são permitidos. Se a instituição é pública, então, o parâmetro é ainda mais distante: aí se aplica a Lei de Gérson, e a meta passa ser levar vantagem.
É importante lembrar que até meados da década de 70 não existia, no português coloquial brasileiro, a expressão "dinheiro do contribuinte": tínhamos "imposto" ou, mais frequentemente, "dinheiro do governo". (e eu me lembro disso muito bem pela frustração de não conseguir traduzir "taxpayers money" na época em que ainda amadurecia o aprendizado do inglês). Há toda uma tendência para que o brasileiro não respeite as instituições.
E porque os brasileiros não respeitam as instituições??? A reposta hoje me parece bastante clara: o brasileiro não costuma respeitar as instituições porque as instituições não costumam respeitar o brasileiro. Ao longo desses cinco séculos construiu-se um país onde é mais importante se relacionar bem com os gestores das instituições públicas do que com a própria instituição (estou sendo generoso evitando utilizar a expressão "donos das instituições públicas").
A CONSTRUÇÃO DO CAU
Hoje eu paguei a minha primeira anuidade do CAU. Não me lembro de ter tido jamais tanta satisfação em pagar uma taxa (que é uma prima do conhecido imposto). Que satisfação! Fiquei emocionado - emoção esta que se repete agora que escrevo sobre o assunto.
Certamente que há componentes pessoais nesta minha emoção, ao finalmente ver o meu sonho de estudante realizado por este enorme mutirão profissional, iniciado que foi por pessoas que não puderam ver a conclusão de seu trabalho. Mas há também a convicção de que demos o passo certo e que estamos fazendo um grande esforço para que o CAU seja o melhor Conselho que possamos ter. E, talvez o mais importante de tudo, fico emocionado porque me vejo representado no CAU.
E este é o nosso desafio principal na construção do CAU: fazer com que os nossos colegas, TODOS os nossos colegas, se sintam representados no CAU e vejam no CAU O CONSELHO DE TODOS NÓS. Não podemos correr o risco de construirmos um conselho que seja visto como a imagem das lideranças do IAB, FNA ou outras instituições do CBA. O CAU não pode ser mais uma instituição nos moldes dos 500 anos que nasce da realeza e protege os privilegiados em detrimento do povo. Não podemos ser mais um exemplo do Paradoxo Brasileiro.
A receita para isto é muito simples: é necessário que nós Conselheiros nos aproximemos dos nossos colegas. É necessário que nós os representemos não só de direito (o que já fazemos pela 12.378 e outras leis vigentes) como também que os representemos de fato (o que ainda não foi conquistado).
Durante os últimos três anos o nosso objetivo principal foi garantir a existência do CAU: a aprovação da Lei e a implantação dos Conselhos. Por uma série de razões, destacadamente os sucessivos golpes do sistema CONFEA/CREA, várias decisões foram tomadas em grupos menores, algumas vezes em clima de emergencial sigilo.
É necessário que agora engrenemos uma nova marcha. Estamos numa nova fase. Como diria o meu pai, é uma Nova Aurora. O tal do "day after" chegou. O sol já raiou, já é outro dia. Já raiou a liberdade no horizonte da arquitetura brasileira e precisamos chamar TODOS os colegas para esse novo mutirão que será a construção do CAU. (Os colegas que lidaram com habitação popular sabem da força insuperável do mutirão.)
Esse mutirão é NECESSÁRIAO para que possamos realizar um BOM TRABALHO, é FUNDAMENTAL para que o CAU espelhe as aspirações da nossa COLETIVIDADE, e é IMPRESCINDÍVEL para fomentar um RELACIONAMENTO responsável e justo entre o CAU e TODOS NÓS.
Raul Nobre Martins, Arquiteto e Urbanista
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