Aventuras tupiniquins de Le Corbusier

Como as viagens para o Brasil e o passeio sobre a cidade do Rio de Janeiro em um avião pilotado por Antoine de Saint-Exupéry influenciaram a obra do arquiteto e urbanista

POR: GUILHERME BRYAN   /  12/08/2015



FOTO MICHEL SIMA / RDA / GETTY IMAGES
O Mundo vivia o período entre guerras e a quebra da Bolsa de Valores de Nova York. Muitas rápidas e drásticas mudanças tecnológicas aconteciam. E lá estava, em 1929, o arquiteto e pintor franco-suíço Charles-Edouard Jeanneret-Gris, conhecido como Le Corbusier, a bordo de um avião pilotado pelo aviador e escritor Antoine de Saint-Exupéry, o célebre autor de O pequeno príncipe, que fez o trajeto Buenos Aires-Montevidéu-Rio de Janeiro. Era a primeira vez que o “pai” da arquitetura moderna, cuja morte completará 50 anos em 27 deste mês, via uma cidade do alto e essas viagens tiveram influência direta em sua vida e obra. “Para entendê-lo, é preciso lembrar que ele nasce em 6 de outubro de 1887 (em La Chaux-de-Fonds, na Suíça) e que o carro tinha sido inventado na Alemanha poucos anos antes. Ou seja, ele vive em um mundo muito diferente e, quando morre, em 1965, fazia quatro anos que o homem chegara ao espaço. Então, voar sobre a cidade era algo extremamente mágico e romântico naquele momento, e ele era muito atento a isso”, comenta Rafael Urano Frajndlich, professor de teoria e projeto da Faculdade de Arquitetura da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Le Corbusier já era então incluído no panteão dos grandes arquitetos do século 20, ao lado de, entre outros, Frank Lloyd Wright e Ludwig Mies van der Rohe, e considerado um dos criadores do que ficou conhecido como modernismo. Entre suas criações mais importantes está a Unité d’Habitation, um conceito que começou a desenvolver justamente na década de 1920. A primeira unidade de habitação foi construída nos anos 1940, em Marselha, em uma França então devastada pela guerra, onde criou outras três. Houve mais uma na Alemanha Oriental. “A importância de Le Corbusier está em ter sido capaz de organizar e sistematizar os princípios e valores que conduziram o modo de projetar arquitetura e urbanismo a partir do início do século 20, como expressões de uma época com conquistas tecnológicas e alterações nas estruturas sociais”, atesta Maria Alzira Marzagão Monfré, arquiteta e professora no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.

A visita à América do Sul aconteceu entre setembro e dezembro de 1929 e durou 74 dias, quando Le Corbusier proferiu conferências em Buenos Aires, Montevidéu, São Paulo e Rio de Janeiro e delineou planos para essas cidades. Também viajou para o interior do país com o advogado e mecenas Paulo Prado e a artista plástica Tarsila do Amaral. O resultado da experiência ficou registrado no livro Precisões: sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo, publicado em Paris em 1930. “As visitas dele à América do Sul, que tinha um contexto social diferente do europeu, o deixaram impressionado. Esse contexto oferecia obstáculos à implantação dos modelos criados na Europa. Pode-se dizer que as viagens ao Brasil mudaram sua sensibilidade artística, uma vez que adaptar a arquitetura ao lugar flexibiliza o ideal de universalização. Os croquis e estudos dele, para projetos no Brasil, apresentam edifícios em fitas longas e sinuosas, contrapondo-se aos desenhos ortogonais”, explica Diogo de Lucas Fiche, arquiteto formado pela Universidade Federal de Viçosa (MG).

Naquele momento, vários países estavam vivendo uma reorganização no campo do conhecimento e das práticas profissionais. Quando Le Corbusier vem ao Brasil pela primeira vez, sua reflexão já está bastante consolidada sobre isso, além de que também estávamos no meio desse furacão de renovação tecnológica, de procedimentos construtivos e, portanto, de engendramentos de novas formas de pensar a cidade e o próprio gesto da arquitetura. Ao mesmo tempo, seu discurso é muito próximo do nosso discurso americano, e não podemos esquecer que o Brasil não só foi a primeira América, a América de Américo Vespúcio, como os cenários americanos pouco construídos inspiraram sonhos de outras formas de vida coletiva. Ele faz, por um lado, o elogio da natureza, mas tem também uma atitude muito construtivista, propositiva e de ação, e nós, americanos e brasileiros, somos povos também de ação e, inclusive, de destruição. Então, o encontro das ideias de Le Corbusier no Brasil, sobretudo com alguns arquitetos cariocas, passa por modos de funcionamento discursivo e poético que permeiam esse diálogo”, destaca Margareth da Silva Pereira, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ e uma das autoras do livro 
Le Corbusier e o Brasil.
Ver o Rio de Janeiro do alto o deixou deslumbrado com uma cidade que se dispunha entalada entre o mar e o relevo escarpado de origem vulcânica, o que lhe sugeriu a ideia de uma cidade-viaduto ou cidade linear, com uma estrada que acompanhasse a costa, a cerca de cem metros de altura, e abrigasse, debaixo dela, 15 andares com possibilidade de criar habitações. Algo semelhante seria pensado por ele para Argel, a capital da Argélia. Comprova-se, assim, o interesse de Le Corbusier por refletir a respeito da arquitetura e da cidade, ou seja, a vida coletiva, de maneira mais ampla.

“As cidades europeias já estão muito laboradas, cultivadas, trabalhadas e, além do mais, o Rio de Janeiro não é uma cidade qualquer, do ponto de vista da sua implantação, do  seu sítio. Qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade compreende a força desse sítio. E Le Corbusier estava especulando ali novas formas de vida e novos modelos de cidade. Não só ele, mas vários intelectuais, desde Friedrich Engels (revolucionário alemão), estão pontuando que o ciclo de morar em cidades acabará, seja pelas mudanças políticas, seja a partir das transformações tecnológicas – ferrovias, carros, telefone. Essas mudanças irão provocar o viver sob novas formas de organização da sociedade e de seu habitat. Nós vamos nos organizar espacialmente de outra forma. Ou seja, estamos passando de um tempo citadino para outra temporalidade, que é a do urbano”, reflete Margareth da Silva Pereira.

Le Corbusier voltou ao Brasil em 1936, a convite do arquiteto e urbanista brasileiro Lúcio Costa, para prestar consultoria no projeto do Palácio Gustavo Capanema, sede do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, cuja equipe contava com nomes como o então jovem Oscar Niemeyer e o arquiteto paisagista Roberto Burle Marx. Entre os elementos característicos desse projeto, estão uso de terraço jardim, suspensão dos blocos sobre pilotis, planta livre, fachada livre, em vidro, com uso de “brise-soleil” para controle de insolação. Niemeyer e Le Corbusier voltariam a se encontrar em 1949, quando o franco-suíço foi escolhido como responsável pelo projeto da sede das Nações Unidas, em Nova York, nos Estados Unidos, concluído em 1953, 12 anos antes de sua morte em decorrência de um ataque cardíaco enquanto nadava em Roquebrune-Cap-Martin, no mar Mediterrâneo.

“Quando Corbusier volta para a Europa, a obra dele já está passando por transformações. Ele tem uma abordagem mais plástica, em termos mais genéricos, da arquitetura. E as pessoas atribuem essa libertação da forma do Corbusier em parte ao contato com as correntes brasileiras, que tinham uma abordagem mais livre da arquitetura moderna. A pintura do Corbusier também se transforma nesse período”, opina Rafael Urano, que conclui: “Por sua vez, dizem que o Niemeyer era um arquiteto regular, por assim dizer, e aí, quando ele entra em contato com o Corbusier, ele se torna uma figura muito mais proeminente e mais ousada, e consegue realizar a obra dele”.



Fonte: http://www.revistadacultura.com.br/revistadacultura/detalhe/15-08-12/Aventuras_tupiniquins_de_Le_Corbusier.aspx

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