Entrevista com Paulo Mendes da Rocha: “A cidade não foi feita para dar lucro para ninguém”

por Luan Galani
Um dos principais expoentes da arquitetura brasileira de todos os tempos assume a posição de inabalável defensor das cidades, nossos lares fundamentais: advoga por espaços mais humanizados, pelo resgate da consciência social na arquitetura e por uma coerência política no planejamento urbano
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Perfil
A arquitetura não é a mesma depois dele e sua gangue. Afinal, Paulo Mendes da Rocha ajudou a construir uma geração inquieta de arquitetos e urbanistas que hoje questionam e propõem soluções para os problemas das cidades. O arquiteto capixaba de 86 anos é um dos últimos da heroica geração de modernistas brasileiros da Escola Paulista, corrente também pensada por João Batista Vilanova Artigas e Ruy Ohtake, por exemplo. Único brasileiro vivo a ter um Pritzker na estante, o prêmio de arquitetura mais importante do mundo, também concedido a Oscar Niemeyer, Mendes da Rocha vive em uma permanente busca de harmonia entre a arquitetura e a natureza, sem nunca se permitir esquecer do compromisso social de suas construções. Em visita relâmpago à Curitiba, deu uma entrevista exclusiva para a  Haus no Museu Oscar Niemeyer e disparou críticas sinceras e diretas naquele seu jeito milimétrico de pensar nas palavras que usa.

Sua principal característica é o respeito para com as pessoas que vão fazer uso do projeto e os habitantes da cidade. O próprio júri do Pritzker de 2006 reforçou essa sua consciência.
Eu esqueci. Teve mesmo esse discursinho lá [risos].

Você acha que seus colegas contemporâneos fazem isso? Se não, como pôr em prática o mesmo senso de responsabilidade social?
A essência da arquitetura como forma de conhecimento se ensina desde que o mundo é mundo. Essa transmissão de conhecimento da dimensão social da questão. O problema, como sempre, é que nem todo mundo se comove a ponto de ver que essa é a razão da angústia de fazer. Senão, não vale a pena fazer. Mas,apesar das contradições, nunca foi tão oportuno o discurso sobre a dimensão social do gênero humano no universo. A história se move, mas não tanto quanto hoje. Nunca foi tão rápida a sucessão de êxitos da tecnologia e o aproveitamento das coisas.

Ainda que seja maior a oportunidade de valorizar o gênero humano, não há menos comprometimento por parte de alguns arquitetos contemporâneos? Será que a ideologia morreu, a poesia foi pelo ralo, e só restou o caráter estético? É possível colocar a ideologia de novo no cenário?
Sempre se falou de momentos históricos extraordinários, como a monumental passagem da Idade Média para o Renascimento, pela formação de uma cultura popular capaz de escarnecer dos valores anteriores. Para nós, americanos, isso tem significado extraordinário. América foi encontrada há 400 anos. Só de Artigas e Niemeyer temos 100 anos. Mas os tempos mudaram e ninguém pode dizer o que o outro deve fazer. Diante do quadro desorganizado que se vê no mundo, é a educação que vai sofrer transformações imediatas. O que fazemos com nossos filhos? Primeiro, a professora manda ficar quieto, uma estupidez. O sujeito está aprendendo a falar. É preciso amarrar uma pedra num barbante e mostrar o que é pêndulo, força de gravidade, que solta e cai. Qualquer criança entende isso. É mais fácil entender fenômenos fundamentais da física, do que cortar no isopor um coração e colorir de vermelho porque é dia das mães. É uma abstração estúpida.

Isso vai degolando parte da criatividade. Enquanto isso a gente aprende fórmulas, teorias, mas não experiências…
A abertura do conhecimento não pode ser por meio de fantasias estúpidas. Portanto, acho que tudo está em transformação. Quem menos sabe como vai ser é um homem como eu, de mais de 80 anos. Quem mais sabe são os meninos de 15 anos [risos].

Essa nova consciência está em construção?
O problema é o seguinte. E faço questão de não ter razão. Estamos conversando, certo? Suponha que nós da América Latina resolvêssemos desenvolver a navegação fluvial. O que seria da Europa sem navegar o Ruhr, o que seria dos Estados Unidos sem o Mississipi e a Rússia sem o Volga? Dá para navegar brincando no rio com carga de 500 caminhões. Temos rios fantásticos. Se nos empenhássemos nisso, teríamos de fundar novas cidades na rede de portos fluviais. Imagine que a América começou em disputa entre portugueses e espanhóis, que decidiram a linha reta do Tratado de Tordesilhas como se divide um presunto. Se pegar a questão fluvial, o rio não segue a linha política. Passa por vários países e a navegação obrigaria a uma parceria entre eles. Com isso se construiria a paz na América Latina. Isso por que nos interessa trazer produtos para cá também, conectar Pacífico e Atlântico pelo transporte. São virtudes do trabalho humano solidário. No fundo, a essência de toda decisão é uma certa política de como fazer: que materiais usar, se interessa à economia, se de fato é acessível a todos.

E existe real empenho em fazer esse planejamento?
Como não? Eu estou empenhadíssimo. A luta é política. Mas você vai dizer que é uma luta inglória. Nem tanto. O Brasil não criou o Ministério das Cidades? Acha que não revela uma consciência no meio do panegírico do nosso governo atual? A inteligência não foi exterminada, mas o camarada que está exercendo isso é pífio, degenerou. Temos 35 partidos! A Inglaterra, altamente desenvolvida na política, tem dois partidos. Os Estados Unidos também. Não dá para ter 30 projetos para o país. Nem 30 partidos. Estamos em rota de corrigir erros, porém, sem saber o que é o acerto definitivo. Não sabemos exatamente como fazer as coisas, mas podemos saber exatamente o que não fazer. Sabe-se que não dá para fazer uma cadeira com dois pontos. Veja a casa no prédio vertical. É a solução para cidade. Uma cidade como Curitiba tem uma dimensão ótima de população, cerca de 3 milhões. São Paulo tem seus 20 milhões, é fruto do erro. Em um país atrasado, aparece trabalho e vai todo mundo para lá. Cujo outro grande problema da superpopulação é o esvaziamento dos outros recintos.

Mas todo mundo quer estar na cidade.
A consciência sobre impossibilidade de uma superpopulação é geral. Todo mundo sabe que o planeta não alimenta as superpopulações. Se ela dobrar como cresceu até agora ou em até menos tempo, pode sair devagarinho, porque não vai dar para nós.

Você mesmo já disse que a “questão fundamental da arquitetura é resolver problemas”. Como então recuperar áreas degradadas nas cidades?
A riqueza do homem é a cidade, que tem virtudes incontáveis. Uma delas é amparar a imprevisibilidade da vida. A questão da funcionalidade da arquitetura é mais ou menos mítica. É pretexto para fazer. Preciso de quarto, cozinha, sala. Faça 80 casas verticais em 20×20. Sujeito desce e pega metrô embaixo. Não pode ter casa no chão nunca. Não é regra de arquitetura, mas senso comum. No chão tem comércio, tem que ter botequim, cinema, tem que ter espaço para quem anda.

O espaço público como prioridade.
O conceito de espaço para mim, e ouso dizer para a arquitetura, pressupõe público. Não há espaço privado, portanto. Que espaço você quer imaginar para me contestar? E minha mente, você pode dizer. Mas ela não existe se não publicar, transformar em coisa. Verso escrito é coisa, tanto que tinha mão suja de tinta. Um A é uma coisa. Mesmo só falado, você ouviu porque houve vibração que chegou até seu ouvido. Veja quanto pode se fazer com pouco recurso. Todas as sinfonias de Rachmaninoff. São só sete notas musicais. São 25 letras tudo que Dante escreveu. Não é?

Aproveitando o centenário do Artigas, é quase óbvio relacionar você a ele. Como era a convivência de vocês? O que você incorporou do Artigas ou vice-versa?
Uma figura extraordinária o Artigas. Mas não me atrevo a incorporar coisa alguma dele. Impossível. Era sedutor e as ideias dele se multiplicavam em você, do seu modo.

O engajamento político de vocês é semelhante…
Fui convidado para a banca de desenho de um menino na FAAP. Projeto fantástico. A sala tinha seis metros de pé direito. Ele fez na diagonal, com madeira simples, bem escorado, uma rampa que ia quase até o teto. E disse: “a rampa tem três metros de altura. Levo 15 segundos para chegar ao topo. Se andasse um ano e meio, eu entraria em órbita”. Se continuar, é verdade. Só não sabemos fazer o engenho. Mas teoricamente daria. A grande questão, portanto: podemos fazer tudo. O que vamos fazer, então? Política pura. Decisões humanas têm dimensão política importante. E o significado da política envolve necessariamente solidariedade. Existe o individual, mas, se mostrar sua política, seu grupo vai reagir.

Museu dos Coches, na região de Belém, em Lisboa, Portugal, inaugurado no início do ano: espelho d’água reflete a luz natural que entra pelos domos e simplicidade dos volumes contrasta com a complexidade do entorno histórico. Armenio Teixeira / Divulgação.
Museu dos Coches, na região de Belém, em Lisboa, Portugal, inaugurado no início do ano: espelho d’água reflete a luz natural que entra pelos domos e simplicidade dos volumes contrasta com a complexidade do entorno histórico. Armenio Teixeira / Divulgação.

E a resistência entre grupos?
Mas, por outro lado, nunca como hoje houve organismos internacionais, como ONU, Unesco, FAO. Permanentemente unidos. Não há dúvida. Só é mal divulgado, na minha opinião.

O que emperra o desenvolvimento real das cidades?
São as políticas contraditórias. A política colonial, por exemplo, é um desastre. São Paulo tem o Tietê, um rio importante, como o Sena está para Paris. A Light and Power, a quem São Paulo diz que deve seu progresso, colocou uma usina hidrelétrica nele que não tinha necessidade, só para produzir 800 mil kW. Para comparar, a de Urubupungá produz 6 milhões de kW. Para isso, a empresa pegou o rio Pinheiros, maior afluente do Tietê, a alma de São Paulo, montou bombas que sugam água do rio – olha a maldade, um afluente que tornou-se assassino! – e joga em quatro canos. Eles por sua vez, com 700 metros de desnível, jogam a água para baixo. E colocou usinas compradas da França em cada uma das tubulações. Isso arruinou o sistema hídrico da cidade. É a questão de desfrutar da natureza: se você não lava roupa, não bebe água, não dá banho na criança , mas joga a água no mar, como acontece em São Paulo, não há dinheiro que pague esse kilowatt. Mas foram adiante. Fizeram uma subsidiária de bondes elétricos, que servia pequenos bairros. Todo mundo aplaudiu. No fim do bairro, prolongaram 10 quilômetros, fizeram balão de retorno e compraram os matos que não valiam nada. Venderam os lotes, fizeram o Jardim América e foram embora. É uma política que inaugura os escândalos que fizeram na geografia, nas virtudes da natureza de São Paulo. A cidade não pode ser mercado de coisas.

Como reverter essas políticas?
O conhecimento e a educação é que vão mudar o mundo, porque permitem o entendimento. A cidade tem virtudes incomensuráveis. A cidade não foi feita para dar lucro para ninguém. E, sim, para desfrutar da possibilidade de conversar. Para amparar a imprevisibilidade da vida. Já imaginou o homem solitário?

Qual sua percepção sobre Curitiba?
Esse papo em Curitiba é melhor que em qualquer outro lugar do mundo. Isso é virtude de quem foi aqui prefeito, governador e arquiteto, o Jaime Lerner, que tomou providências concretas através do serviço público para que a população tivesse consciência da cidade. Não é que ele fez sistema de transporte. Tinha de fazer. Não fez os jardinzinhos. Tinha de fazer. Ou melhor: é o que podia fazer. Aproveitando o centenário do Artigas, ele dizia sempre: a casa é como as cidades, as cidades como a casa. Você mora na cidade. Ninguém pode dizer que mora em casa. O filho vai à escola, você trabalha na fábrica, vai ao hospital para se tratar. Quando se faz uma casa, está se fazendo a cidade. Olha esse lugar que estamos (MON). Oscar Niemeyer deixa a gente de queixo caído. Não gosto de tudo. Às vezes é muito formalismo.

E como o Niemeyer, é muito pesado ser um Pritzker?
Pesadíssimo. É horrível ganhar prêmio. Mas se perguntar: prefere não ter ganhado? De jeito nenhum [risos]. Prefiro ter ganhado. Mas ser focado ninguém gosta.

Desenho à mão livre do Cais das Artes, na Enseada do Suá, em Vitória, no Espírito Santo, que será terminado em breve. Estrutura respeita o entorno e abrigará museu e teatro para grandes eventos. Imagem: Martin Corullon/Escritório Paulo Mendes da Rocha/Divulgação.
Desenho à mão livre do Cais das Artes, na Enseada do Suá, em Vitória, no Espírito Santo, que será terminado em breve. Estrutura respeita o entorno e abrigará museu e teatro para grandes eventos. Imagem: Martin Corullon/Escritório Paulo Mendes da Rocha/Divulgação.

Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/haus/arquitetura/entrevista-a-cidade-nao-foi-feita-para-dar-lucro-para-ninguem/

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