Destruir, consumir, especular

Em 1951, o filósofo alemão Martin Heidegger pronunciou, em Darmastad, a conferência intitulada “Construir, habitar, pensar”, que apresenta sua particular visão do sentido do ser do homem na terra e a transcendência das suas ações. Tal pensamento, pelas conotações relacionadas com a arquitetura, influenciou as teorias disciplinares em grande parte do mundo ocidental na segunda metade do Século XX.

Segundo sua interpretação, construir é propriamente habitar; e habitar é o modo como os mortais são e estão sobre a terra. O habitar desdobra-se em duas acepções: construir, entendido como cultivo e crescimento, e construir no sentido de edificar construções.

Em um sentido tectônico, o construir implica a transformação da matéria: aculturar e artificializar a natureza para criar os espaços necessários para a evolução da espécie. O próprio ser e estar no mundo consiste em transformar, com senso de equilíbrio, a natureza em cultura, o natural em artificial.

Construir implica também destruir. A transformação fora de determinado ponto de equilíbrio leva o conceito de construção ao de destruição, com agressões ao sistema natural e ao território de suporte. O acelerado processo de urbanização manifesta a transposição dos limites razoáveis entre contexto natural e artificial. As mudanças climáticas e o persistente esgotamento dos recursos hídricos são alguns dos sinais de um processo autodestrutivo ao qual a humanidade parece encaminhada.

Na arquitetura, o abandono dos sistemas de conforto natural, apoiado na confiança ilimitada nos meios artificiais, assim como a universalização e homologação de processos de projetação, agride os sistemas culturais apoiados no respeito às características naturais de cada contexto de atuação.

O habitar implica ocupar racionalmente o território para favorecer o desenvolvimento econômico, cultural e social. O atual paradigma de progresso, baseado no consumo, transfere o conceito de ocupação para o de invasão e o de habitar para o de consumir. Invadir e consumir são ações de consequências trágicas para a sustentabilidade planetária, cujos conflitos evidenciam-se nos graves problemas derivados de processos de urbanização sem planejamento e controle. Países como Brasil, com mais de 85% de população urbana, assumem consequências críticas, manifestadas no dia a dia da maioria das cidades. Elas já não se habitam; se consomem, em um processo de gradativa decadência das qualidades urbanísticas, culturais e ambientais.

O pensar constitui o grande diferencial do homem na terra, único ser vivo com capacidade de raciocinar e evoluir em termos de criatividade e inteligência. O ato de pensar expressa uma vontade de crescimento coletivo, generoso e solidário. No atual paradigma baseado no consumo, a individualidade e o egoísmo transformam o ato de pensar em especular. A especulação representa análise premeditada em beneficio próprio, motor de desintegração e conflito social. A ação especulativa degrada comportamentos sociais e leva o ato de construir ao de destruir e o de habitar ao de consumir.

A cidade, palco de encontros e conflitos humanos, manifesta, na evolução histórica dos processos de urbanização, a transformação de atitudes baseadas no construir, habitar e pensar em interesses que priorizam o destruir, consumir e especular. O sinal de alerta se traduz nos conflitos que agridem, dia a dia, a convivência civilizada: violência, imobilidade, insegurança, exclusão, abuso de poder, complementados com a banalidade e vulgaridade de expressões, comportamentos e construções que marcam esta época de contradições entre desenvolvimento tecnológico persistente e decadência social e cultural galopante.

Roberto Ghione, arquiteto

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