Paulo Mendes da Rocha : A construção de um horizonte discursivo no inicío da carreira do arquiteto

Artigo: Mendes da Rocha, por Daniele Pisani

A construção de um horizonte discursivo no inicío da carreira do arquiteto

Em março de 1958, Paulo Mendes da Rocha foi eleito vencedor do concurso para o Club Athletico Paulistano. Em agosto de 1960, Mendes da Rocha - recomendado, entre outros, por Rino Levi, um dos jurados no certame do Paulistano, e por Ícaro de Castro Mello - foi contratado pela FAU/USP como assistente de João Batista Vilanova Artigas no curso Composição de Arquitetura - Grandes Composições 2.

Com pouco mais de 30 anos, então, Paulo Mendes da Rocha já realizara uma obra que marcaria época, prontamente reconhecida como tal, e tinha sido chamado a colaborar com o líder da arquitetura paulista. É tentador acreditar que o arquiteto começava a carreira tão maduro profissionalmente, sobretudo quando se considera que, antes de se matricular na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie, havia passado dois anos estudando na Escola Naval do Rio de Janeiro. Mas a extraordinária maturidade do Paulistano é uma conquista trabalhosa; e o único modo de mostrá‑lo é analisar os primeiros projetos da carreira de Mendes da Rocha, anteriores, no tempo, ao que se convencionou considerar o início da sua produção.
São projetos elaborados em meados dos anos 1950, entre a graduação e o concurso para o Paulistano, não construídos e até agora inéditos (leia a entrevista nesta edição, sobre o livro “Paulo Mendes da Rocha: obra completa escrito por Daniele Pisani), embora não seja menor o papel que desempenharam na formação do arquiteto. Eles nos permitem acompanhar o desenvolvimento, em curto período de tempo, de uma obra de surpreendente originalidade.

REFERÊNCIAS DO MODERNISMO LOCAL
Os primeiros projetos de Mendes da Rocha de que se tem notícia revelam claramente as marcas do ambiente de sua formação. A capela que ele desenhou por volta de 1955 para o Jardim Virgínia, no Guarujá, litoral paulista, que pela síntese do sistema estrutural e configuração espacial antecipa o trabalho dos anos seguintes, revela, por exemplo, referências difusas entre os arquitetos da sua geração no Mackenzie. Em particular, parece ter lugar um diálogo com obras como o projeto da capela do Hospital do Jaçanã, de Eduardo Kneese de Mello, publicada no número 124/125 da Revista de Engenharia Mackenzie. Ainda a 1955 remonta o projeto, notável pela dialética estabelecida com o cenário natural, do Iate Clube Ponta da Enseada, que tem afinidades com uma série de casas de praia concebidas por Oswaldo Bratke, outra grande figura da cena contemporânea paulista.

A ênfase nas afinidades desses primeiros projetos com obras de outros arquitetos paulistas não parte da convicção de que simpatias individuais ou referências pessoais explicam a formação de um universo discursivo e figurativo. No entanto, o que esses projetos evidenciam é que, no primeiro momento, as referências para Mendes da Rocha foram as obras das principais figuras do modernismo local, no mais formadas pelo Mackenzie e com trabalhos publicados, sobretudo a partir do número 111/112, de 1952, na Revista de Engenharia Mackenzie. Naquele ano, alguns estudantes de arquitetura conquistaram seu espaço no periódico oficial de uma escola em que Christiano Stockler das Neves impunha um ensino de belas‑artes, fundamentado na harmonia e equilíbrio compositivos, baseado, é verdade, na eficaz preparação no campo técnico e estrutural (graças à presença de figuras como Roberto Rossi Zuccolo) em vez da imposição de determinado partido formal.
Também parece orbitar o mundo do Mackenzie o projeto (sem data) para os interiores da casa de Luiz Stringari, realizada por uma gigante do desenvolvimento de São Paulo, a multinacional Cia. City. Uma delicada cortina, de um lado, um elegante mobiliário, do outro, e a citação à escultura de Alberto Giacometti, o jovem Mendes da Rocha é chamado a dar expressão ao gosto da fatia mais educada da elite paulista, que começava a adotar a causa modernista. Segue, evidentemente, a sintonia com o que desejam realizar alguns dos melhores colegas de faculdade que, conhecedores da carência do mercado paulista de mobiliário adequado aos seus projetos, começam a produzi-lo e a vendê-lo eles mesmos, culminando com a inauguração, em 1952, do espaço expositivo Branco e Preto. Como testemunho do precoce interesse de Mendes da Rocha pelo design, por outro lado, é importante lembrar que a famosa cadeira Paulistano foi projetada em 1956, bem antes da sua participação no concurso para o ginásio e, portanto, sem vínculos com o club.
Mais ou menos contemporânea, aparece a primeira versão, não datada, do projeto para a casa Virgílio Lopes da Silva, expressão máxima de um modernismo elegante que se vale do uso de pedra - comum nas casas contemporâneas de Lucio Costa, Gregori Warchavchik, Bratke e Levi, assim como em Artigas -, no qual parece evidente a presença da obra de Richard Neutra (de quem Mendes da Rocha disse recentemente ter prontamente comprado e lido o livro Arquitetura social em países de clima quente, publicado em São Paulo em 1948).
Por volta de 1956 deve-se buscar outro projeto, também sem data exata, que ajuda a lançar luz em outro lado do imaginário do arquiteto, aquele para o RSL, sigla que é a abreviação do nome Rua São Luiz. Ele se resume, com base na lição de Mies van der Rohe (e talvez mais ainda da Lever House, de SOM), em uma malha de superfícies de vidro ritmada por elementos verticais que, coerentemente com a linguagem arquitetônica adotada e à luz do entusiasmo pela recente inauguração da siderúrgica de Volta Redonda, deveria assumir a sua constituição em aço.
O PAPEL DE ARTIGAS
Em 1957 ocorre, então, a primeira vitória em um concurso público, para a concepção da Assembleia Legislativa de Santa Catarina, em Florianópolis, com a qual os jovens Mendes da Rocha, Pedro Paulo de Melo Saraiva e Alfredo S. Paesani ganharam a capa da edição 232 da revista Acrópole. O projeto não é particularmente original, mas um detalhe assinala outro caminho de enriquecimento do universo figurativo então em curso: seus pilares são uma explícita e precoce reformulação daqueles do Palácio da Alvorada, rendendo, assim, homenagem à capital federal, então em fase de construção.
Algo crucial no processo de maturação do arquiteto é revelado em dois projetos de 1958. Em paralelo ao Paulistano, deve-se também considerar a primeira versão, não realizada, da casa de Gaetano Miani, com a relação com o solo e a interpenetração do espaço externo no edificado já pertencendo, sem dúvida, à poética de Mendes da Rocha. A iluminação zenital pelas duas aberturas na cobertura da residência mostra uma propensão a “pensar em corte”, e o sistema estrutural, ­composto por duas paredes laterais portantes que se dobram para formar a cobertura, precede aquilo que à primeira vista parecia ser a principal referência nesse projeto, a casa Taques Bittencourt, de Artigas. A datação precoce da casa Miani é um dado sobre o qual é preciso refletir: ela é anterior à entrada de Mendes da Rocha na órbita de Artigas, e anterior ainda aos projetos de Artigas que fariam escola.
A casa Miani e, em par com ela, o Paulistano são obras sem igual no horizonte contemporâneo paulista e, portanto, suficientes para refutar a ideia, já muito repetida, de que Artigas foi o “mestre” de Mendes da Rocha. Os dois projetos comprovam, ao contrário, que o amadurecimento de Mendes da Rocha não segue o de Artigas, mas corre paralelo ao desenvolvimento da obra deste. Da mesma forma, o projeto para a Faculdade de Direito de Sorocaba (1959), concebido em corte e articulado por uma série de níveis intermediários, reúne todas as funções em um único edifício, em torno de um espaço aberto, apresentando muitos dos traços do contemporâneo ginásio de Itanhaém, de Artigas.
Com isso não se quer negar nem subestimar o papel vital desempenhado por Artigas na carreira de Mendes da Rocha. Deve-se, no entanto, admitir que não foi com os seus projetos que Artigas orientou a arquitetura do jovem colega - o corpo compacto de concreto aparente do Paulistano fala, de fato, uma linguagem rude, sintética e elegante, de que não se tinha notícia em São Paulo, mesmo na obra do arquiteto paranaense. Aquilo que Artigas oferece a Mendes da Rocha, ao contrário, é um quadro teórico e político; e é precisamente por essa razão que ele sempre agradece a Artigas por ter operado um complemento “da minha visão com sua habilidade crítica” e “uma revisão dos meus parâmetros”.
Se a influência de Artigas em Mendes da Rocha não pode dar fruto até o início dos anos 1960, quando eles trabalharam lado a lado na FAU e no Plano de Ação de Carvalho Pinto, surge, então, um problema: se não provém de Artigas, quais são os estímulos que Mendes da Rocha recebe e elabora no curto espaço de tempo transcorrido entre os primeiros projetos, aqui rapidamente examinados, e a dupla Paulistano/casa Miani? Qual é a diferença entre os primeiros trabalhos, sem dúvida já muito promissores e testemunhos da obra de um jovem que olha ao redor em busca de suas raízes, e a sua arquitetura, que, a partir de 1958, revela já um súbito e inconfundível universo figurativo?
Não existe, naturalmente, uma solução única e simples para esse dilema inevitável. Para se tentar chegar a uma resposta, deve-se observar como os anos em questão são particularmente relevantes para a arquitetura no Brasil. Foi exatamente por volta de 1956 que começaram, assim, a circular nas páginas de revistas brasileiras (e não só) os dois projetos que devem ser considerados os principais pontos de referência de Mendes da Rocha nessa fase de definição da sua poética pessoal: o Museu de Arte Moderna de Caracas, que ele costuma ainda hoje definir como “o melhor projeto de Oscar Niemeyer”, e, sobretudo, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, de Affonso Eduardo Reidy, que outros colegas da faculdade, como Fábio Penteado e Pedro Paulo de Melo Saraiva, consideram, de própria palavra, sua principal referência naquela fase.
A CONVOCAÇÃO DO MAM/RJ
É principalmente o MAM/RJ que se destaca aos olhos de Mendes da Rocha como a indicação de uma tarefa a ser realizada, um exemplo de “convocação”, já que “quando se pensa em uma questão”, ele afirma, “deve-se mobilizar tudo o que se sabe”. Com o seu nítido e monumental sistema estrutural de pórticos enfileirados, o corpo expositivo do MAM/RJ constitui, de fato, o emblema de uma arquitetura cuja configuração formal é inseparável da organização espacial e da função estrutural. E com essa abordagem, totalmente desenvolvida tanto no Paulistano quanto em outro projeto contemporâneo - menor mas igualmente sintomático -, o da Westingbras, Mendes da Rocha vai tirar uma lição.
Mas o MAM/RJ se impõe como exemplo também por outro motivo. Reidy, em seu papel de técnico da prefeitura do Rio de Janeiro, durante anos contratado para elaborar um plano que incluía a escavação do morro de Santo Antônio (com o redesenho da área que seria liberada para descongestionar uma zona nevrálgica da cidade), cujo solo removido seria usado para aterrar uma faixa ao longo da costa, encontrava‑se nas melhores condições para tirar proveito do valor estratégico que o novo museu poderia assumir. E que de fato vai assumir quando se consegue realizar, junto com Roberto Burle Marx, o parque do Flamengo.
Além de estabelecer um diálogo com a paisagem, o MAM/RJ quer modificá‑la radicalmente. E é nesse sentido que a obra se coloca como um manifesto: é o ato de fé na capacidade do homem de empregar recursos técnicos a seu favor, para transformar o seu país. Precisamente por esse motivo, no amadurecimento de Mendes da Rocha é legítimo atribuir ao MAM/RJ, e à obra de Reidy no geral, um papel importante: a seus olhos, com a extraordinária síntese orientada à estrutura, como símbolo do domínio da técnica, mobilizada para construir, da origem, um espaço de uso público, o museu funde o desenvolvimento mais promissor da arquitetura brasileira com uma lição que só a partir desse momento Mendes da Rocha parece retomar, aquela do pai, o grande engenheiro civil Paulo de Menezes Mendes da Rocha (que por anos ensinou Navegação Interior e Portos Marítimos e, entre 1943 e 1947, foi diretor da Escola Politécnica de São Paulo), a quem ele costumava acompanhar como um jovem repleto de curiosidade de visitar os estaleiros.
Foi ao lado do pai, relata o arquiteto, “que aprendi que a natureza - para nós, homens - (...) é uma coisa fabricada (...). Eu nunca olhei a paisagem, até mesmo quando criança, como um puro e simples fato natural”.
O que até agora parecia um ponto de inflexão é assim, mais precisamente, a conquista de um contexto mais amplo onde se enquadrar a arquitetura. Um cenário que, desse momento em diante, significou - como num lampejo entre a lição do pai e tendências da arquitetura contemporânea brasileira, como aquela expressa no MAM/RJ - a reconfiguração do território.
Tal conquista, então, ocorre no momento em que o Brasil, tomando a via do desenvolvimento por meio da ­industrialização “forçada”, acolhe o concurso para a construção da nova capital federal no coração do sertão, com base no Plano de Metas, ou seja, quando o Brasil, mais do que nunca, parece mestre do seu próprio destino. E é próprio dessa confiança que a arquitetura de Mendes da Rocha ganhe expressão a partir do Paulistano.
Além do desejo de se aproveitar - com base no exemplo de obras como o Copan e o Conjunto Nacional, e como será um pouco mais tarde o Masp - de uma encomenda privada para doar um espaço público à cidade, evidente na configuração do grande terraço, o Paulistano já revela sutilmente uma tendência a transformar o solo, a reconfigurar a topografia. A parcial escavação do campo esportivo no solo e a construção, com o terraço, de um solo artificial são explícitas a esse respeito.
Um simples ginásio para um cliente privado vem, assim, a se formatar como fragmento de uma reconfiguração global da superfície da Terra, a emergência pontual de uma infraestrutura universal do território, realizada com o propósito de fazer a “geografia habitável para além do edifício isolado”. A clareza da estrutura e a sua audácia constituem, ao mesmo tempo, o instrumento e o emblema de tal objetivo. A sólida preparação técnica recebida no Mackenzie por Mendes da Rocha está aqui, pela primeira vez, a servir como um valioso recurso de articulação de um discurso. A técnica se revela o meio pelo qual se pode e se deve transformar o mundo: é a convicção de que é possível dominar, graças à inteligência, as leis que regem o funcionamento do planeta e empregá‑las com engenhosidade que fica na base dos seus projetos - como de fato acontece em belos e ligeiramente recentes desenhos, inéditos, em que o aquilão parece constituir uma metáfora da arquitetura.
De resto, a partir do Paulistano, na obra de Mendes da Rocha os problemas formais e técnicos não são autônomos, porque não são e não podem ser pensados isoladamente. O projeto não é concebido senão em termos estruturais: arranjo espacial e configuração estrutural nascem um em relação ao outro. O projeto não é confrontado com os limites impostos pela técnica em determinada fase do desenvolvimento, mas parte deles e a eles pertence; neles é constituído e, então, pode se desenvolver livremente em qualquer direção. E se permite assim a carregar o puro - mas não gratuito - gesto poético.

Fonte:
Publicada originalmente em Projeto Design na Edição 405
http://www.arcoweb.com.br/projetodesign/artigos/paulo-mendes-da-rocha-por-daniele-pisani

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