70% dos territórios urbanos na América Latina são locais informais onde 'não há cidade'

Radicado há 30 anos em São Paulo, o arquiteto Héctor Vigliecca, especialista em habitação social, considera moradia popular principal desafio urbanístico da região, mas adverte o poder público: falta de dinheiro não pode justificar 'arquitetura pobre'

10/06/2015

Por Lamia Oualalou,

Do Rio de Janeiro (RJ), do Opera Mundi

Qual é o papel do arquiteto nas favelas e na construção de cidades integradas? A preocupação prática vai muito além da teoria numa América Latina marcada pela história de urbanização rápida, caótica, e, muitas vezes, fonte de alto grau de exclusão. Este é justamente um dos principais eixos de trabalho do arquiteto uruguaio Héctor Vigliecca, radicado há 30 anos em São Paulo.

Héctor Vigliecca | Foto: Divulgação/Vigliecca & Associados

"Cerca de 70% dos territórios urbanos da América Latina, principalmente do Brasil, são informais. Ou seja, são territórios onde ‘não existe cidade’; por isso a habitação social é o principal desafio", explica, em  entrevista concedida a Opera Mundi após o lançamento de seu último livro, O terceiro território: habitação coletiva e cidade (Vigliecca & Associados). Autor de projetos variados, que vão desde uma proposta de reforma da endinheirada Rua Oscar Freire, até a reurbanização de parte da favela de Heliópolis, ambos na capital paulista, ele  afirma que não existe um método diferente de trabalho na favela ou no asfalto.

"A tão falada economia de recursos não é uma justificativa para fazer uma arquitetura pobre", frisa Vigliecca, sobre o desenvolvimento de projetos em áreas menos favorecidas. Sobre o ‘Minha Casa Minha Vida’, programa de moradia popular do governo federal, o uruguaio, apesar de reconhecer o altíssimo volume de investimentos, lamenta a predominância de uma visão ligada apenas à quantidade e ao custo: são “depósitos de prédios”, afastados do centro das cidades.

Opera Mundi: Trabalhar com habitação social implica trabalhar em favelas?

Héctor Vigliecca: Não necessariamente. Trabalhar com habitação social é considerar todo o hábitat (assentamentos humanos) promovendo condições de vida nas cidades e, principalmente, estabelecendo ambiente urbano. Na verdade, falar “habitação social” é um pleonasmo. Toda habitação é social. Afinal, a favela tem potencialidades e pontos críticos como qualquer outra área da cidade formal. A especificidade não está no modo de trabalho, e, sim, na matéria; ou seja, uma geografia acidentada, preexistências não convencionais, histórias sociais peculiares, o grau de exclusão. Cada projeto carrega um desafio próprio e raramente repetível. O único conceito permanente é concluir o objetivo final que é estabelecer valores de cidadania. A tão falada economia de recursos não é justificativa para fazer uma arquitetura pobre.

OM: Pode dar um exemplo de uma intervenção semelhante do arquiteto na favela e no asfalto?

HV: Por exemplo: levamos em consideração as relações urbanas tanto no projeto de habitação social no Parque Novo Santo Amaro V, em área crítica da cidade de São Paulo, quanto no projeto do edifício anexo da Biblioteca Nacional, em área central do Rio de Janeiro. No Parque Novo Santo Amaro V, em vez de criarmos uma nova realidade para o local, inserimos o projeto na paisagem urbana, valorizando sua geografia e seus recursos. Recuperamos o verde por meio de um parque linear, que funciona como eixo central que estrutura o conjunto das intervenções. Ao longo deste parque temos pontos de atração como pista de skate e campo de futebol, além da escola, que estimulam a circulação dos moradores.

O mesmo conceito foi aplicado no projeto do edifício anexo à Biblioteca Nacional. No caso de nosso projeto desenvolvido para este edifício, o térreo é o cuore, ou seja, o centro de convivência e de interligação entre os diferentes blocos do edifício, onde estão os principais fluxos de comunicação. As atividades públicas e culturais como teatro, sala multimídia, café, restaurante e livraria estão concentradas ali. Rampas, intersecções, passagens públicas e elevadores motivam e induzem o intercâmbio intelectual e social.

OM: Qual a sua visão dos principais programas de moradia do governo?

HV: Já existiram vários programas de moradia no Brasil. Desde as primeiras vilas operárias até este mais recente programa, Minha Casa Minha Vida, que, possivelmente, é o maior investimento realizado em toda a história do país. De fato, estão sendo construídas 3 milhões de casas, o que significa acesso à casa própria para 12 milhões de pessoas. Perante essa realidade historicamente extraordinária, paira no ar uma incerteza desanimadora: a de que o Brasil está perdendo a grande oportunidade de estimular o conhecimento tecnológico para a elaboração desses projetos, de desenvolver uma nova maneira de pensar arquitetura, de mudar o pensamento de um país.

OM: Porque o senhor acha que o Brasil está perdendo uma grande oportunidade?

HV: Porque o Estado tem colocado essa megaoperação apenas como um problema de custo, de quantidade de gerenciamento e de capacidade motriz, crasso equívoco. Esse modo de operar gera exclusão, que é o estopim para um enfrentamento de classes. É difícil acreditar que, ao longo da história, desde as revoluções industriais, passando por urbanizações em cidades como Londres, Paris, Berlim e Amsterdã no pós-guerra, até a China de hoje, vemos quase impassivelmente erros catastróficos se repetirem, apesar da crítica consolidada de certos modelos que continuam se repetindo como uma doença incurável na qual o poder público, arquitetos, urbanistas e construtoras compartilham inexplicavelmente. Me refiro a projetos que se restringem a criar depósitos de prédios. Eles resolvem a questão construtiva, mas não a do habitar. Nós não aceitamos mais a desculpa das urgências.

Parque Novo Santo Amaro V, em SP: 'inserimos o projeto na paisagem urbana'

OM: O que faz com que um projeto de moradia popular seja um êxito ou um fracasso?

HV: O modo como os moradores incorporam os benefícios pensados e criados pelo arquiteto. O Parque Novo Santo Amaro V dispõe dos dois exemplos. O local se tornou um ponto de animação, um ponto de encontro da população, que compartilha espaços públicos com os moradores, como a quadra de futebol e a pista de skate. Por outro lado, o excesso de uso pela população da redondeza está causando reação contrária, levando moradores a querer fechar o local, como um condomínio, o que vai totalmente contra à proposta do projeto.

OM: Qual o impacto de megaeventos como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos sobre a cidade?

HV: Muitas das transformações trazidas por uma Olimpíada são positivas para uma cidade, como a construção de novas áreas urbanas com número apreciável de habitações destinadas à população, valorização de áreas deterioradas, melhoria do transporte público e da infraestrutura de mobilidade, além do surgimento de espaços de recreação e de esportes inusitados. A Olimpíada de Barcelona é um exemplo positivo, em que a Vila Olímpica foi incorporada à cidade após a competição, transformando-se em um novo bairro. Tudo isso depende de um gerenciamento inteligente dos recursos e de sua manutenção posterior.

OM: O senhor participou da modernização da chamada Arena Castelão, em  Fortaleza, para o Copa do Mundo. O que acha das críticas sobre o desperdício de dinheiro na construção de novos estádios?

HV: Poderia ter se aproveitado os estádios já existentes com um mínimo de reformas suficientes para uma ou duas partidas, por meio de estruturas provisórias, e assim evitar a homogeneização improcedente e sem critérios para cidades onde as condições de manutenção posterior se tornaram impossíveis. No caso de Fortaleza, o principal objetivo do projeto de modernização do Castelão, além de inseri-lo nos padrões exigidos pela Fifa, era transformá-lo em uma arena multiuso, moderna e autossustentável. Hoje, o Castelão se destaca por uma arquitetura que integra parte do existente com a nova estrutura e por oferecer uma atmosfera de espetáculo mesmo vazio.

OM: O Uruguai fascina nestes últimos anos. O que o fato do senhor ser originário deste país trouxe para seu trabalho?

HV: Toda a América do Sul viveu um espírito revolucionário na década de 1970. As universidades eram os principais focos de rebeldia. Nesse contexto, como professor de arquitetura em Montevidéu, vivi, junto com meus colegas, momentos de restrição de liberdade e de ameaças aos direitos civis. O golpe de Estado e o consequente regime de exceção ainda acentuavam a ausência de perspectivas de trabalho.

O Brasil passava por situação semelhante desde que governo militar usurpou o poder em 1964. Entretanto, no Brasil, as políticas desenvolvimentistas e o chamado “milagre econômico” colocavam a necessidade de novos projetos e obras. Foi neste contexto que decidi me mudar para o Brasil, em 1975. Além dessa conjuntura mais macro, vir para o Brasil significava me manter perto de meu país de origem, da família e dos amigos. No Uruguai, na Faculdade de Arquitetura da Udelar (Universidade da República), onde me formei em 1968, vivia-se um momento de grande intensidade intelectual e de engajamento político. O convívio de grandes professores com uma população universitária relativamente pequena permitia um amplo debate que constantemente se atualizava. O que as vanguardas europeias discutiam era rapidamente incorporado à nossa formação.

OM: O que tinha de especial esta época no Uruguai?

HV: No Uruguai, na década de 70, foi fundamental minha experiência com as cooperativas de habitação, em um período no qual se aglutinaram os melhores profissionais da minha geração. As cooperativas foram criadas pela sociedade civil e tiveram participação expressiva dos arquitetos. A formação e a experiência profissional que tive no Uruguai, desenvolvendo projetos de habitação de interesse social, me habilitaram a enfrentar esse desafio — que é o grande desafio da América Latina, onde prevalece o crescimento descontrolado e marginal. Cerca de 70% dos territórios urbanos da América Latina, principalmente no Brasil, são informais. Ou seja, são territórios onde “não existe cidade”. Isso aguçou meu interesse e me colocou um desafio de usar minha experiência para enfrentar essas áreas críticas. Em suma, meu trabalho com cooperativas e mutirões e minha experiência trabalhando com a própria comunidade no Uruguai são o que eu trouxe para o Brasil. O desdobramento dessa experiência com cooperativas foi fundamental para o meu trabalho na área de habitação social no Brasil.

OM: Qual deve ser a participação dos moradores na elaboração de um projeto urbano?

HV: No Brasil, a participação da população é uma instância legalmente obrigatória desde o ano de 2001. A partir da aprovação do Estatuto da Cidade, nada pode ser feito sem o ritual de aprovações públicas em todos os setores da sociedade organizada. A participação da população, por nossa parte, sempre foi feita. Já fazia isso durante minha experiência com cooperativas no Uruguai. Em 1970, em Montevidéu, nós, os arquitetos, nos reuníamos com a população em grandes cinemas da cidade para apresentar o projeto e suas variáveis.

Ainda sobre a participação da população nos projetos, temos um caso interessante em São Paulo. Moradores de Heliópolis manifestaram à Prefeitura, em uma consulta prévia, o desejo de viver em um conjunto habitacional igual ao que já havíamos realizado ali, o Heliópolis Gleba A. Assim nasceu o Heliópolis Gleba H, também conhecido como Residencial Sílvio Baccarelli. Um dos argumentos é que haviam gostado da área de serviços, que era espaçosa.

OM: Os sem tetos viraram um dos principais movimentos políticos, especificamente em São Paulo, como o senhor vê este fenômeno?

HV: É um fenômeno de alerta à política urbana sobre um problema. É uma demonstração do descaso do poder público a um certo setor da população que não pode acessar a habitação na cidade. Em São Paulo, o novo PDE (Plano Diretor Estratégico) praticamente duplicou a quantidade de áreas destinadas à moradia popular que respondam a esse setor da população. Isso é uma mudança muito positiva.

OM: O urbanismo de hoje facilita a violência na cidade e especificamente na favela?

HV: Que urbanismo? Na verdade, a falta de urbanismo estabelece uma não-cidade na qual o poder público está no centro. Portanto, observando o mapa da criminalidade, está coincide exatamente sobre essas áreas sem urbanidade, ou seja, sem cidade.  Basta observar o mapa da criminalidade para perceber que a maior incidência de violência se dá em áreas marginais.

OM: Como definir este ‘terceiro território’, título do seu livro?

HV: O terceiro território diz respeito à criação de um novo território, que não é completamente novo ou estranho ao lugar, mas também não é a imitação ou reinterpretação do já existente. É a sobreposição de diversos momentos da história no mesmo lugar. Sempre coloco como exemplo o Renascimento, que surgiu das cidades medievais. Tenho exemplo de terceiro território em todos os nossos projetos. Um dos melhores exemplos é o projeto Heliópolis Gleba A, no qual as construções existentes formam uma peça única com o conjunto novo.

OM: Onde termina a arquitetura e onde começa o urbanismo?

HV: Se nos referimos ao desenho urbano, a arquitetura e o desenho urbano são essencialmente a mesma coisa, só muda a escala. Nós praticamos o urbanismo fazendo arquitetura e praticamos a arquitetura fazendo urbanismo. Podemos assim afirmar que a essência do trabalho do arquiteto urbanista se resume à definição das interfaces. Ou seja, definir a qualificação dos espaços públicos.

Se nos referimos a planos urbanísticos, além da ampliação da escala, isso envolve questões de mobilidade, modalidade, definição das vocações de usos e a lógica da sua localização, sustentabilidade, condições ambientais, terminais de abastecimento em todas as suas escalas, ordenanças legais dos planos diretores, questões do mercado, lazer e áreas verdes e os interesses políticos. Podemos dizer que os planos urbanos são a convergência entre o interesse político e a oportunidade comercial.

Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/32229#

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