Livro - A Casa e a Rua

Este semestre que passou foi definitivamente um dois mais corridos que já passei em meu curso de Arquitetura e Urbanismo. Em meio a trocentos rolos de papel manteiga, centenas de arquivos de CAD e Sketchup, projeto, urbanismo, iluminação, hidráulica, e mais várias outras coisas, consegui achar uma brecha de inspiração (e menos de transpiração) ao decorrer das aulas graças ao livro A Casa e a Rua – Espaço, Cidadania, Mulher e Morte no Brasil do escritor Roberto DaMatta – leitura obrigatória da disciplina de Arquitetura Brasileira.
O conceituado antropólogo não trata sobre arquitetura diretamente, mas sim sobre um dos aspectos fundamentais que a envolvem: as pessoas. Mais precisamente as pessoas do Brasil, a sociedade brasileira. Não vá pensando que, por ser um livro sobre antropologia, a leitura seja desgastante, técnica e monótona. Muito pelo contrário, DaMatta surpreende com a gentileza de suas palavras e trata o leitor de forma aberta, recebendo-o da rua para a sua casa. Confira abaixo uma breve resenha sobre o livro e entenda porque A Casa e a Rua deve estar na sua prateleira de livros.
Roberto DaMatta (fonte: http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti)
A Casa e a Rua são usadas no livro de Roberto DaMatta como grandes metáforas para ajudar a entender o comportamento, as relações e as contradições da sociedade brasileira. O âmbito de A Casa e a Rua acaba por envolver o espaço, a cidadania, a mulher e até a morte como variáveis fundamentais à compreensão dessa sociedade. Segundo o autor, casa e rua não se restringem a espaços físicos, sendo na verdade grandes “esferas de ação social”, que são opostas e ao mesmo tempo complementares. A casa e a rua refletem as ambigüidades da sociedade brasileira, são diferentes conjuntos de valores cuja abrangência pode variar muito em função de seu referencial.
O ESPAÇOPrimordialmente, conhecemos a casa e a rua como espaços físicos, mas na verdade são conceitos muito mais amplos e repletos de significados. São, na verdade, grandes “entidades morais”. Desse modo, o conjunto de valores de um indivíduo varia radicalmente conforme o contexto em que ele se encontra: no ambiente de sua casa, o indivíduo tende a acreditar no diálogo, na valorização das individualidades. Na rua, por outro lado, aceita-se que todos devem ser tratados de forma igual segundo a “fria letra da lei”, de modo a manter a ordem. O contraste entre os dois conceitos é abrupto: a casa é o espaço da compreensão, do diálogo, da individualidade. A rua é o espaço da impessoalidade, do isolamento.
A casa, sobretudo, fala de relações harmoniosas e quando “somos postos para fora de casa”, acabamos por relacionar a rua a alguns aspectos negativos, onde não somos mais pessoas e sim indivíduos regidos por regras e leis impessoais que estamos submetidos a cumprir. A rua e seus espaços são lugares do anonimato, da “conseqüência dos seus atos” e por isso, tendemos a relacioná-la a um espaço perigoso. Enquanto o tempo da casa é medido pela hora do almoço, da novela, etc., o tempo da rua é geralmente medido pelo relógio com horários e rotinas fixas. Mas você deve estar pensando “mas nem sempre é assim”. Claro, temos  casos muito curiosos onde a casa invade a rua e vice-versa. Um grande exemplo da casa invadindo a rua é o nosso Carnaval, onde as noções de impessoalidade e hierarquia quase desaparecem em meio às festividades populares, quando a própria cidade ou mesmo o país assume o papel de “casa”.
Carnaval de rua no Rio de Janeiro (fonte: http://acusticaperfeita.files.wordpress.com)

CIDADANIA
“Se o conceito de cidadania implica, de um lado, a ideia fundamental de indivíduo, e de outra, regras universais, como essa noção é percebida e vivida em uma sociedade onde a relação desempenha um papel crítico na concepção e na dinâmica da ordem social?”.
O autor é bastante incisivo quando propõe a sociedade brasileira (entre outras sociedades ibero-americanas) como uma SOCIEDADE RELACIONAL. Nesse caso, o indivíduo no contexto da rua não se distingue por sua individualidade, mas por um conjunto de signos que ele traz pelas relações que ele tem como parte de um subconjunto (sindicalistas, estudantes, ricos, etc). Mas essa teia de relações vai além: as ações dos indivíduos variam em função das amizades, dos contatos que se tem.
O que podemos observar na nossa sociedade é que o brasileiro compreende a si como um cidadão por sua própria natureza, como se a cidadania fosse “um elemento básico e espontâneo de sua essência”, independentemente de exercê-la: ele tem seus direitos como cidadão por ser brasileiro, sem que necessariamente cumpra sua função. A rigor, o exercício da cidadania até existe, mas num âmbito muito mais individualista do que cidadão de fato, refletindo mais uma vez o anseio do brasileiro por transportar os valores da casa para a rua, de ser entendido como indivíduo. Assim, temos com freqüência situações em que o sujeito defende sua comunidade muito mais por conta das relações pessoais que ela representa para ele, e por tudo que ele pode eventualmente obter em troca.
Capa do livro Dona Flor e Seus Dois Maridos (fonte: http://outrofoco.files.wordpress.com)

MULHER
DaMatta também usa a mulher como figura simbólica de exemplo destas características já citadas sobre a nossa sociedade. Tomando como referência algumas obras de Jorge Amado, principalmente Dona Flor e seus dois maridos, o autor trata da dualidade brasileira, do lado festeiro e do lado racional, da liberdade e da legalidade de nossos atos, da casa e da rua – e a mulher como peça de ligação e intermediadora destes dois extremos.
Apesar de uma visão ultra-romântica da mulher (de que gosto de concordar), como ente mediadora do interno com o externo, como a força para fazermos coisas antes nunca premeditadas, Roberto DaMatta toca em um ponto fundamental de sua tese com a seguinte citação: “(…) o Brasil não é nem o país do Carnaval, nem a pátria do ‘homem cordial’, nem o território da violência. Também não é a sociedade feita inteiramente de feudalismo e desordens admnistrativas. O Brasil é o país do Carnaval e é também e simultaneamente a sociedade do ‘sério’, do ‘legal’, das comemorações cívicas e das leis que têm exceções para os bem-nascidos e relacionados. Tudo indica que fazemos como fez Dona Flor, buscando juntar sistematicamente esses pólos.”

MORTE
A morte acaba por representar um terceiro conjunto de valores distinto aos outros dois (casa e rua) abordados no livro. Trata-se de um “espaço” em que o cidadão torna-se mais sensível, espiritualizado, reflexivo. No caso de uma sociedade relacional como a nossa, presenciar a morte é como fazer parte dela, como estar no mesmo local do morto que, por sua vez, está em uma dimensão alheia à casa, à rua e a qualquer outra conhecida. Por não estar mais sujeito aos valores éticos e morais que regem o nosso mundo, o morto adquire um novo status, em que seus pecados parecem ser subitamente absolvidos aos olhos daqueles que o conheceram vida.

Por que ler A Casa e a Rua?
Bom, se você é arquiteto ou estuda e pratica uma profissão que esteja relacionada às pessoas (praticamente todas não?), você DEVE ler este ótimo livro. Como este site trata sobre Arquitetura posso dizer que a leitura ajuda não só a entender um pouco mais sobre para quem estamos projetando mas também a entender a importância e a ferramenta que temos em nossas mãos quando estamos praticando arquitetura. Quando falamos mais especificamente sobre os temas abordados por DaMatta, é possível que se faça uma discussão acerca da desvalorização por parte da sociedade brasileira dos espaços públicos, bem como do significado profundo que o lar adquire para essa sociedade. Já parou para pensar quantas ações e relações você provoca ao projetar um espaço público e o quanto isso é importante para a saúde da cidade?

Aproveite estas férias e leia A Casa e a Rua, de Roberto DaMatta, RECOMENDADO pelo Arquitetônico.

Partes deste texto são de autoria também de Guilherme Ruchaud e Caio Sabbagh.

Fonte: http://portalarquitetonico.com.br/a-casa-e-a-rua-resenha/

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