Siza Vieira: “Não há cidades desinteressantes”

A arquitectura “tem muito a ver com música, cinema, ballet, escultura ou literatura” e o trabalho em equipa “é essencial desde o início de cada projecto”.
Siza Vieira: “Não há cidades  desinteressantes”

Durante a conversa, com o rio como pano de fundo e uma luz cristalina, entram pela janela do atelier de Álvaro Siza Vieira os sons de gaivotas, aviões prestes a aterrar no Porto, um helicóptero e sirenes. Parece um quadro, mas com sons. Aos 82 anos, o arquitecto continua a relativizar a importância dos prémios, embora lhes atribua peso no "conforto para o ego".

Que marcas ficaram da educação dada pelos seus pais?

Tudo de bom que tenho e posso ter. O meu pai era engenheiro e professor na Escola Industrial à noite, uma pessoa que trabalhava muito, inteligente e culto. A família era a preocupação máxima naqueles tempos que não eram fáceis: éramos cinco, o meu pai tinha bom emprego, mas os salários eram baixos e não havia grandes apoios. A minha mãe dedicou-se aos filhos e tivemos uma infância muito feliz.

Quis ser escultor, mas a ideia de vida boémia associada à profissão não agradou à família. Agradece ao seu pai ser arquitecto?

Ele gostaria mais que fosse engenheiro, arquitecto foi tolerável [risos], mas nunca me impôs coisa alguma, era uma pessoa encantadora, não dava para discutir ou tomar atitudes radicais. Fui para Belas Artes com a ideia de mudar paulatinamente para escultura, mas depois interessei-me pela arquitectura.

O interesse teve a ver com os professores?

Teve a ver com a renovação profunda, pois o corpo docente, quando entrei, em 1949, estava a aproximar-se ou mesmo na idade da reforma. Houve renovação muito certeira, tendo vindo de Lisboa para o Porto o mestre Carlos Ramos que chegou como professor de Arquitectura e passou a director quando o anterior saiu. Era uma pessoa de grande qualidade, grande arquitecto e pedagogo, um homem de grande diplomacia, capaz de levar avante enorme renovação num tempo em que era difícil e, sobretudo, não era bem vista. Escolheu com grande certeza o novo corpo docente quando não havia concursos, optou por gente muito nova, alguns recém-formados e já num empenho grande pela conquista da modernidade que não era muito bem-vinda naqueles tempos de ditadura. 

O hábito de ter muita gente à mesa em casa ajudou no diálogo que quer no atelier?

Não directamente, mas o ambiente em que fui educado influenciou. As famílias eram grandes, havia proximidade de vizinhos, ambiente confortável - embora por vezes asfixiante e fechado - e estabilidade, substituída por mobilidade.

E isso é bom?

Como tudo tem duas faces: é bom pela abertura, maior contacto e conhecimento, mas também se criou uma instabilidade que afecta ou caracteriza um pouco a própria arquitectura.

Em que sentido?

No sentido em que, por exemplo, hoje não se faz ou aluga uma casa para gerações. A dispersão da família vai até à emigração, à distância, e isso, em relação à arquitectura, cria um apetite não da qualidade de antes, mas da fácil reciclagem e mudança. Sinto na arquitectura de hoje uma menor qualidade física e de durabilidade. Não é por acaso que aparece na arquitectura moderna o ‘plan libre', ou seja, uma maneira de as casas se poderem transformar, prevendo uma grande liberdade no projectado, mas com a possibilidade de reciclagem que, até certo ponto, é ainda um desejo de estabilidade, pois reciclar/transformar tem qualquer coisa que se pretende manter. Mas hoje constrói-se com frequência a pensar em 20 anos de vida da casa, não há essa qualidade estável e intemporal dessa altura. Isso não é assim tão directo e autêntico. Reparei, quando tinha trabalho em Berlim, que os arquitectos com mais prestígio viviam em casas antigas e chegavam a subir quatro pisos todos os dias, uma vez que não tinham ascensores. Era o ambiente não só da cidade, mas da própria casa - sem ‘plan libre', as casas antigas são muito flexíveis, pois os espaços não são especializados. Na arquitectura de hoje o que se vê nas casas é um espaço próprio para a sala de jantar, outro para a sala de estar, outro para o quarto... conformado de tal maneira que é difícil modificar o funcionamento da casa. Nas antigas, as divisões eram quase todas iguais e podia mudar o uso. A família crescia ou decrescia e compunha-se o modo de utilizar a casa.

Costuma dizer que o arquitecto é um especialista em não ser especialista...

É um trocadilho que faço [risos]. A especialização existe e é necessária, mas isso não deve significar dispersão e muitas vezes significa. Na minha profissão, há muitos projectos em que o arquitecto desenha a casa; depois vem um engenheiro e estuda a estrutura para cumprir aquele desenho; vem o electrotécnico e coloca uns candeeiros; vem o do ar condicionado e coloca umas grelhas, isto é, absolutamente disperso. Ora, a especialização é necessária, mas o trabalho de equipa é indispensável sob pena de haver perda de qualidade. Desde o início uma equipa tem de dialogar, surgem sempre muitas contradições, os interesses directos e imediatos de uma das especialidades colidem com os de outra e é preciso trabalhar em equipa. Por vocação, o arquitecto está talhado para ser o coordenador e não pode ser especializado em tudo, devendo concentrar-se nessa coordenação em direcção a um todo coerente.

Na apresentação da tese de um discípulo falou na arquitectura associada à alegria que contamina os espaços. É uma ideia que liga à sua obra desde o início?

Quando disse isso queria referir-me, sobretudo, a este aspecto: o trabalho do arquitecto exige muita concentração e pode ser muito aborrecido, cheio de obstáculos e exigindo quase uma obsessão na concentração. Isto só pode fazer-se bem com prazer. Se predominam os aborrecimentos, esta actividade é para esquecer. Há outros aspectos aos quais ligo a ideia de prazer que compensam isto e têm de ser conquistados, mesmo que seja muito difícil. O resultado disso deve ser uma atmosfera muito agradável e que recebe, tem abertura para as pessoas viverem a sua vida. A arquitectura não pode ser impositiva no sentido de como se utiliza e é fruída. E a isso ligo a ideia de alegria no sentido de plenitude no que se refere à casa.

O Pavilhão de Portugal, um dos seus projectos, pode servir como pagamento de dívida ao Estado. Como analisa isso?

Já tive a informação de que iria ficar consignado à Universidade de Lisboa...

E parece-lhe boa ideia?

É uma possibilidade boa, assim haja disponibilidade financeira. É uma utilização muito apropriada para aquele edifício que foi feito com a condição de ser adaptável a qualquer programa. Esteve para ser instalações do Governo ou centro cultural, nada disso foi para a frente, tenho esperança que agora se concretize.

Com trabalho espalhado pelo Mundo inteiro, identifica uma cidade na qual se reveja como arquitecto e como cidadão?

Há muitas e conheço poucas, porque ao fim e ao cabo o Mundo é muito grande [risos]. Dou o exemplo de Nápoles. Muitos visitantes classificam-na como caótica, mas dizem os de lá que perigoso é passar o sinal verde [risos]. Mas há algo muito interessante: não há acidentes. Porque se criou uma cultura de convivência que tem a ver com essa exteriorização vital, acompanhada por respeito e cuidado. Quem não é de lá fica estarrecido, eu guiei lá e parei para que fosse um amigo a conduzir. Claro que tem aspectos negativos, mas é uma cidade fascinante.

Elegeria mais alguma?

Muitas, quase todas em que trabalhei. Por exemplo, Berlim: quem visita a cidade tem ali à mão a história da evolução da arquitectura moderna, está lá tudo, incluindo os arquitectos que tiveram de exilar-se e deram impulso determinante nos Estados Unidos. Posso dizer que não há cidades desinteressantes.

Na família alargada inclui Le Corbusier, Mies van der Rohe, Frank Lloyd Wright, Alvar Aalto, Gropius, Utzon, Niemeyer...

E p'raí mais mil! E alguns a nascer [risos]...

Certo, mas a pergunta é o que há de comum para se filiar nessa família grande?

Modernidade. Sobretudo no tempo em que fiz escola, a arquitectura moderna era quase considerada perigosa e havia um empenho numa suposta arquitectura nacional: há grandes arquitectos que tiveram de remeter-se ao que chamámos "português suave" ou não teriam trabalho. Fizeram obra de grande modernidade, mas, depois, tinham de conter-se como Rogério de Azevedo, cuja obra era de uma modernidade explosiva. Havia pouca informação, um corpo docente de qualidade, mas envelhecido e, em muitos casos, frustrado por causa do ambiente da profissão. Quando entrei a referência quase única de modernidade era Le Corbusier. 

Maiores perigos para a arquitectura?

Vi há pouco tempo um documentário onde se dizia que a arquitectura passara a ser mercadoria e não objecto de desejo ou necessidade, atribuindo-se a isso certa decadência da própria. No caso português está afectada por coisas que vêm da Comunidade Europeia. Exemplo: em nome do mercado livre, deixa de haver regras para honorários dos arquitectos e, em alguns casos, estabelece-se uma concorrência feroz.

Gosta de Pessoa, Picasso, ópera, a voz de Caruso, cinema - como ‘Citizen Kane' e neo-realismo italiano -, jazz de Miles Davis e Billie Holiday. E mais?

Tudo o que referiu tem muito de afim. A arquitectura tem muito a ver com música, cinema, ballet, pintura, escultura, literatura. Faz-me impressão haver quem considere que um arquitecto não pode fazer escultura por estar a meter a foice em seara alheia quando são actividades com muito em comum. 

Há alguma obra que gostasse de realizar?

Não penso nisso. Quando me entregam trabalho a primeira coisa que penso é: ‘Que trabalhão que vai ser!' [risos] Nunca pensei assim, não luto por isso e penso que não vale a pena.

Fonte: http://economico.sapo.pt/noticias/siza-vieira-nao-ha-cidades-desinteressantes_227907.html

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