Arquitetura, Conhecimento e Escritura: como abordar um fato arquitetônico através de palavras?

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© Magritte

Por Igor Fracalossi

No último parágrafo da página trinta e seis de seu livro Presenças Reais, George Steiner põe em jogo uma asseveração: “Só no campo da literatura moderna, se calcula que as universidade soviéticas e ocidentais registram umas trinta mil teses doutorais por ano.”1. Na página seguinte, continua sua proposição com outro dado: “Se estima que, desde fins da década de 1780, se produziram sobre os verdadeiros significados de Hamlet vinte e cinco mil livros, ensaios, artigos, teses doutorais e contribuições a colóquios críticos e especializados.” (o sublinhado é meu). Steiner publicou seu livro no ano de 1989. Passados vinte e quatro anos, se pode supor que a quantidade de teses doutorais publicadas anualmente é consideravelmente maior, ademais se são postas em jogo todas as disciplinas de todas as universidades do mundo. É de supor, consequentemente, que a situação da arquitetura em quanto disciplina não seja substancialmente diferente. Portanto, a primeira pergunta que se faz este ensaio é: o que significa uma tese em meio a este hipertrofiado conjunto?

Apesar da resposta tender à nulidade, a interrogativa não deixa de ser, obviamente, sobre o conhecimento, ou mais bem, sobre o que é um aporte ao conhecimento, ou sobre como aportar ao conhecimento na atualidade, o que se confunde com a pergunta sobre a tese em quanto tal. Sobre isto, Steiner sustenta ao longo do seu livro, a partir da visão de Kant, que seria impossível ter acesso ao conhecimento de fato, em virtude da facticidade e inexplicabilidade da morte. Ou seja, que todo conhecimento tal como se entende, não seria conhecimento em si, senão simulação de conhecimento, visto que seu desenvolvimento tenderia inevitavelmente à pergunta pela morte, o que lhe aprisionaria à indemonstração.

No entanto, tal fato é o que permite, segundo Steiner, à imaginação e ao pensamento serem livres, ou seja, se tudo é simulação, não se faz necessário se ater a nada. Consequentemente, tudo o que é humano –e para Steiner, o essencialmente humano é a arte, a literatura e a música– tende a uma intrínseca contradição entre ficção e realidade. Não obstante, para o autor, ficção não seria o oposto de realidade, senão seu alter-ego. Ou seja, no reino da ficção, no qual estão de modo intrínseco e evidente, a arte, a literatura e a música, o que existe é contra-criação, e consequentemente, contra-realidade. Com os prefixos alter- e contra- se quer dizer o ente que faz possível a existência do outro. Finalmente, segundo o autor, só o fictício é capaz de negar a morte e, por ventura, superá-la, podendo tornar-se assim, mais real que a realidade mesma. Se poderia dizer: só o artifício… e consequentemente: só a arte é capaz de negar a morte, a inércia do conhecimento.

Na primeira frase do segundo capítulo de seu livro, Steiner afirma: “Qualquer coisa pode ser dita e, em consequência, escrita, sobre qualquer coisa.” (sic). Só a linguagem não tem limites, na medida em que deriva, sobretudo, da total liberdade outorgada ao pensamento. E sendo assim, “todas as afirmações, todas as ‘provas’ –dizia Steiner– da existência ou inexistência de Deus estão abertas à negação.” A linguagem só mantem validez em sua lógica interna e fechada, ou seja, na medida em que se definem limites ou parâmetros para ela. Quanto mais claros sejam esses limites, mais evidente será a impressão de algum sentido e mais forte será a tendência a alguma verdade. Por tal motivo, o discurso –escrito ou falado– não pode ser verificado ou refutado rigorosamente, ou seja, não pode ser verificado sem que antes se parta de supostos anteriores; não pode ser verificado sem limites, ou em consciência de todos eles.

Isto pode entender-se de maneira distinta. Em seu conto A Biblioteca de Babel, Jorge Luis Borges afirma que na biblioteca, que é o universo, está tudo: “a historia minuciosa do porvir, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demostração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basílides, o comentário desse evangelho, a relação verídica da tua morte, a versão de cada livro a todas as línguas, as interpolações de cada livro em todos os livros”2. Em virtude dessa totalidade e infinitude, todo escrito que à vista de um homem parece não apresentar nenhum sentido, para outro, embora talvez ainda não tenha vindo à existência e porventura não virá, pode encerrar um sentido preciso. No entanto, para Borges, parece ser vã a busca por tal sentido presente em algum livro, pelo improvável de seu encontro. De tal maneira que, em última instância, a escritura parece não significar nada em si mesma. “Falar é incorrer em tautologias”, diria Borges.

Visto o anterior, o problema agora não é o da tese em quanto meio de produção de conhecimento, discutido de forma breve anteriormente, senão o da tese em quanto escritura. O problema, portanto, a nível acadêmico e dentro da arquitetura em quanto disciplina, está na interminabilidade das interpretações secundárias, ou seja, do comentário, do discurso, da opinião, etc. O comentário, para Steiner, sempre vai gerar mais comentários, o discurso, mais discursos, a opinião, mais opiniões. Somente a arte, a música e a literatura são capaz de pôr fim a esta sequência. Não obstante, é necessário aclarar uma lacuna aberta nas sentenças anteriores. Nenhuma interpretação secundária parece propiciar a irrupção da literatura. Como observador por Steiner, os produtos das interpretações secundárias são sempre interpretações secundárias. Ademais, para o autor, assim como para Borges, as origens das interpretações secundárias também são interpretações secundárias. Ou seja, as interpretações secundárias não falam, sob esta concepção, da arte, da música ou da literatura às quais parece se referir, mas de algum escrito anterior ou inclusive posterior, em se tratando da primeira interpretação secundária em sentido cronológico. A primeira interpretação secundária, segundo Steiner, estaria preocupada em responder futuros possíveis questionamentos e não em interpretar, de fato, uma obra.

“As melhores leituras da arte –dizia Steiner– são arte”. Toda arte séria é intrinsecamente uma interpretação sobre o outro, mas também sobre si mesma. É simultaneamente um ato crítico e autocrítico. Porém autocrítico não no sentido biográfico, senão em sua dimensão transcendental: em seu enfrentamento à morte e à existência. Em outras palavras, para Steiner, a interpretação por excelência é uma nova execução e, em consequência, uma nova criação, uma crítica em ação. A diferença crucial, para o autor, entre esta interpretação ativa e os comentários críticos ou acadêmicos está em que a primeira é fiel ao original, ao pôr em perigo seu próprio destino.

Outra vez mais, Borges esclarece tais apreciações através de um conto. Trata-se de seu Pierre Menard: autor do Quixote. Em seu conto, Menard reescreveu o Quixote de Cervantes, como se fosse Cervantes, embora consciente de ser Menard. “Não queria compor outro Quixote –o que é fácil–, senão ‘o’ Quixote”3 (sic), esclareceu Borges. Logrou um bom domínio do espanhol do século XVII, modificou, talvez em todo sua empresa, uma única vírgula, inexistente na versão de Cervantes, y contudo, disse Borges, não logrou ser senão um exercício intelectual a mais, e como todos, inútil. O singular de Menard, no entanto, foi que “Resolveu adiantar-se à vanidade que aguarda todas as fatigas do homem; acometeu uma empresa complexíssima e de antemão fútil. Dedicou seus escrúpulos e vigílias a repetir num idioma alheio um livro preexistente. Multiplicou os borradores; corrigiu tenazmente e desgarrou milhares de páginas manuscritas. Não permitiu que foram examinadas por ninguém e cuidou para que não lhe sobrevivessem.”.

Menard foi, nessa ocasião, um verdadeiro intérprete, no mesmo sentido com o qual lhe defenderia Steiner: um tradutor ativo, fiel ao original. O Quixote de Menard não é, para Borges, mais verdadeiro que o de Cervantes, senão que é O Quixote –não adjetivos para o ser–. Isto porque talvez o Cervantes que foi Menard logrou ser mais impessoal, mais transcendente, logrou ser um puro meio, logrou pôr-se à disposição sem necessitar motivos mais além da sua própria vontade, logrou ser anterior a Cervantes, logrou faltar.

Uma vez mais, o fator cronologia se faz presente e crucial. O Quixote de Cervantes comenta agora o Quixote, o escrito por Menard, embora Menard tenha escrito depois de três séculos, e apenas dois capítulos e parte de um terceiro. Do mesmo modo, a Odisseia de Homero, escrita aproximadamente no século VIII a.C., seria, para Borges –citado por Steiner–, um mero comentário de Ulisses de James Joyce, publicado em 1922. Sendo assim, a anterioridade ou referencialidade ou melhor, a originalidade na literatura, música ou arte parece não ser uma questão cronológica.

Outra circunstancia que reforça a construção proposta por este ensaio parte, uma vez mais, de um conto de Borges: trata-se da impossibilidade de existir duas coisas iguais no mundo. Na Parábola do palácio, Borges escreve que, certa vez, um poeta convocado por um rei logrou conter todo o palácio numa só palavra ou verso recitado. Foi a única vez, segundo o autor, que duas coisas puderam coexistir por um instante. O rei o matou, porque já não podia viver naquilo que já não mais existia.4 Porque ou se tem o palácio ou se tem a palavra. A palavra apresentava a inexistência do palácio. Ou se tem o edifício escrito ou se tem o edifício materializado –mas que já não existe–.

Esta mútua exclusão parece ser outro problema de aquilo que provem do homem. Ou seja, tudo que parte do homem em direção ao mundo parece tender a uma intrínseca separação. As palavras, o pensamento e os sentidos, mais que conectar homem e mundo, parecem excluí-los mutuamente. E, outra vez, isso parece se dever a inexplicabilidade da morte, o prejuízo original da criação. De tal maneira que qualquer tentativa por parte do homem de se relacionar com o mundo partiria de um prejuízo e, portanto, não seria um saber de fato. A cada nova tentativa, a separação pareceria maior. Em consequência, quanto mais se crê que se conhece o mundo, mais apartados dele os seres humanos estariam, ou deveriam estar.

Apesar de tal circunstância, Steiner mantem sua aposta na arte, na música e na literatura. Segundo ele, elas possuem a absoluta liberdade de não haver chegado a ser, ou seja, de não haver ainda se concretizado em ato, e portanto, de se manter em estado latente. Ao ser um fato iminente, a arte, a música e a literatura não proporcionam a separação do homem com o mundo. Sua vinda à existência é ulterior e será permitida por outros –observador, espectador, leitor–. Compõem a esfera do não nascido e que, portanto, não pode morrer, ou que sempre irá ressurgir.

Nas mãos da imaginação, que como observado por Steiner, é sempre um ato semântico, entra em jogo um novo problema, o última dessa discussão teórica: o problema da semelhança. Tal problema está implícito nos contos já citados de Borges, mas é Michel Foucault em seu Ensaio sobre Magritte5 quem esclarece o ponto. A semelhança é intrínseca à imaginação e a imaginação só é permitida pela semelhança. Porém, a semelhança é sempre óbvia e direta: no caso do quadro Decalcomania de Magritte, o recorte na cortina seria igual à silhueta do homem a sua esquerda. No entanto, Magritte vai mais além da mera semelhança. Chega e atua sobre as similitudes possibilitadas pela semelhança. A similitude é sempre incerta, imprecisa, indefinida, infinita: é a crítica uma descrição de algo existente ou uma construção de algo que ainda não veio a existência? Sou eu o arquiteto do edifício ou seria isto uma reconstrução por parte de outro arquiteto? É isto uma interpretação sobre a obra ou uma memória de seus antecedentes projetuais? Foucault, por sua vez, se perguntava: era o homem parte da cortina ou a cortina sempre esteve recortada?; é a paisagem na cortina a projeção daquilo que está vendo o homem?; foi o homem que se deslocou à esquerda ou a paisagem que se deslocou à direita?; se o homem sempre esteve imóvel, é a paisagem um obséquio do pintor para permitir ver aquilo que o homem impedia? E no entanto, são perguntas sem respostas.

Ao ser semelhantes, os edifícios construídos através de materiais e de palavras são fatos paralelos. E ao serem paralelos, podem coincidir –no sentido geométrico do termo–. Ou seja, dependendo do ponto de vista, podem parecer ser a mesma coisa, embora sobre outro ponto, podem chegar a estar tão distanciados que é impossível relacioná-los. Como dito em outras palavras anteriormente, a posição de coincidência embora não seja mais que uma, é a mais fácil de enxergar.

Na fricção das dissociações entre o escrever, próprio do sistema de produção de conhecimento, e o abordar, próprio da investigação em arquitetura, está a crítica. É sua premissa a tentativa por atuar sob condições extremas de cada polo, na busca por uma nova associação entre ambos

Crítica, interpretação e criação são, em última instância, sinônimos.

  1. George Steiner, Presencias Reales: ¿Hay algo en lo que decimos?, Destino, Barcelona, 2007 (1989)
  2. Jorge Luis Borges, La Biblioteca de Babel, en su Ficciones, Emece, Buenos Aires, 1996.
  3. Jorge Luis Borges, Pierre Menard, en su Ficciones, Emece, Buenos Aires, 1996.
  4. Jorge Luis Borges, Parábola del palacio, en su El Hacedor, Alianza, Madrid, 1997.
  5. Michel Foucault, Esto no es una pipa: ensayo sobre Magritte, Anagrama, Barcelona, 1997.

Fonte: Fracalossi , Igor . "Arquitetura, Conhecimento e Escritura: como abordar um fato arquitetônico através de palavras?" 30 May 2013. ArchDaily. Accessed 31 May 2013. http://www.archdaily.com.br/117366/arquitetura-conhecimento-e-escritura-como-abordar-um-fato-arquitetonico-atraves-de-palavras/?utm_source=ArchDaily+Brasil&utm_campaign=50df875c16-Archdaily-Brasil-Newsletter&utm_medium=email&utm_term=0_318e05562a-50df875c16-407774757

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