Cristina Dantas (especial), Valor Econômico
Nem todas as bombas que aturdiram o mundo durante a Segunda Guerra foram destruidoras. Quando Lina Bo Bardi se referia ao catálogo da exposição "Brazil Builds: Architecture New and Old", que ocorreu no MoMA há 70 anos, costumava dizer que ele "caiu como uma bomba na Europa".
O arquiteto Marcelo Ferraz ouviu mais de uma vez a frase proferida pela arquiteta italiana, com quem estabeleceu longa parceria de trabalho e amizade. Lina era uma jovem arquiteta e ainda vivia na Itália quando o "Brazil Builds" lhe caiu nas mãos. "O catálogo revela o momento em que o país olhava para o futuro, para um horizonte largo. Lançava luz sobre a arquitetura brasileira de origem portuguesa, já mesclada aos nossos elementos, e sobre a arquitetura que nascia - era ao mesmo tempo raiz e antena", diz Ferraz.
Se na ocasião a exposição chamou a atenção dos nova-iorquinos, o livro-catálogo correu o mundo, mostrando que o Brasil engendrava a melhor produção da sua arquitetura. "O moderno, no Brasil, já nasce clássico", afirma Ciro Pirondi, fundador da Escola da Cidade, em São Paulo, que por muitos anos foi amigo de Oscar Niemeyer.
O térreo do MoMA reunia em painéis e algumas maquetes nossas obras mais emblemáticas entre 1652 e 1942: casas e edifícios que resgatavam o passado colonial brasileiro e o devolviam sob traçado novo. Entre as joias que mais chamaram a atenção do público e dos críticos estava o prédio do Ministério da Educação e Cultura, no centro do Rio, assinado por um time de primeira grandeza somado a um convidado ilustre, o arquiteto franco-suíço Le Corbusier.
Passados 70 anos, uma equipe de curadores de arquitetura do MoMA desembarcou no Brasil para começar outra empreitada que também terá vez no museu, em 2015 - em foco, a arquitetura brasileira e latino-americana. Bem antes, na segunda-feira, outro evento traz à tona a produção brasileira recente: uma exposição com mais de 60 nomes da nova geração de arquitetos será aberta em Constança, na Alemanha.
Seguirá para Veneza, depois para Copenhague. Deve ainda visitar outros locais, antes de chegar ao Brasil no ano que vem. Os cariocas terão um gostinho da mostra ainda neste ano. Batizada de "Arquitetura Brasileira 2003-2013", ela será vista no Espaço Tom Jobim, no Rio, em outubro. A ideia partiu dos professores da Escola da Cidade, que espalharam curadores por todos os cantos do país.
"Do ponto de vista formal, continuamos herdeiros do moderno, utilizando o seu vocabulário e a sua sintaxe", afirma Carlos Eduardo Comas
Desta vez, no MoMA ou nas cidades europeias, não há articulação governamental fomentando a arquitetura. Outros tempos. Le Corbusier veio ao Brasil por iniciativa e insistência de Lucio Costa. "Lucio tanto atormentou o ministro Gustavo Capanema que ele ligou para o presidente Getúlio Vargas e o colocou ao telefone para explicar por que, afinal, o governo deveria trazer Le Corbusier para o Brasil", diz Pirondi. Não se sabe o que Costa soprou nos ouvidos de Vargas, mas a conversa não durou mais do que cinco minutos - e o convite foi autorizado.
Assim começou a nascer o Ministério da Educação e Cultura, hoje Edifício Gustavo Capanema. "Lucio Costa sabia o que queria com a vinda de Le Corbusier: repercussão e proximidade com novas técnicas", diz Pirondi.
A equipe formada incluía Carlos Leão, Jorge Moreira, Ernani Vasconcellos e também novatos: Affonso Reidy e Niemeyer. Um dia, durante os trabalhos, Leão chamou Lucio Costa de lado: "Você viu o croqui maravilhoso que o garoto fez?", disse, referindo-se ao desenho que observara de relance na prancheta de Niemeyer. Costa não tinha visto. Passado um tempo, solicitou o desenho a Niemeyer. "Joguei fora", ele respondeu. "Então vá buscar."
Niemeyer resgatou o croqui, que havia amassado e atirado pela janela. Alisou o papel e o entregou a Costa. "Ali estava o desenho do edifício como o conhecemos hoje", conta Pirondi. Naturalmente, a concepção foi coletiva, e pela primeira vez na história todos os princípios da arquitetura moderna, preconizados por Le Corbusier, eram reunidos em uma obra de tal escala, um edifício de 14 andares: os pilotis, o brise-soleil, a planta livre.
Foi de Niemeyer a ideia de subir os pilotis em 11 metros, fazendo do térreo um grande pátio, que seria enriquecido com azulejos de Cândido Portinari e esculturas de Bruno Giorgi. Não à toa, o prédio foi cantado em prosa e verso - literalmente.
Ganhou poema de Vinicius de Moraes e bela exaltação de Carlos Drummond de Andrade, na época à frente do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) e também próximo de Gustavo Capanema - condição que fazia toda a diferença. "Havia intelectuais de vanguarda inseridos nas brechas do aparelho do Estado", relembra o historiador, curador e crítico Lauro Cavalcanti. O prédio do ministério foi concluído em 1947, mas o projeto havia sido entregue em 1936. Niemeyer ainda não havia saído da casa dos 20 anos. Costa não era muito mais velho: tinha 34.
Havia bons motivos para que o MoMA - e os EUA - tentasse se aproximar do Brasil. Em plena Segunda Guerra, Getúlio Vargas era um pêndulo que oscilava entre a Itália de Mussolini e a América do Norte dos aliados. Mas críticos e historiadores acreditam que a arquitetura moderna brasileira era motivo de atração em si.
Além do mais, o Pavilhão Brasileiro da Exposição de Nova York, em 1939, havia aberto o caminho e os olhos dos especialistas para o modelo de arquitetura em curso em terras brasileiras. Costa, que havia vencido o concurso, fez um discurso surpreendente. Não se limitou a agradecer aos jurados. Chamou para compor a equipe o segundo colocado, com seu extenso nome: Oscar Ribeiro de Almeida Niemeyer Soares Filho.
"O segundo colocado é melhor", disse, com simplicidade. "Há três desenhos, que podem ser vistos na Casa de Lucio Costa, no Rio", diz Pirondi. "Lá estão o projeto vencedor, de Lucio, o projeto de Niemeyer e um terceiro desenho, que eles fizeram juntos e é totalmente diferente dos seus projetos originais - e que acabou sendo executado.
Tudo o que se fez depois na arquitetura moderna já está antecipado ali - o mezanino curvo do Pavilhão Brasileiro, os pilotis elevados, o jardim de Burle Marx, a interação entre interior e exterior. O projeto é sublime", elogia Pirondi.
Se o Pavilhão foi o pontapé inicial, outros gols ficaram registrados no livro "Brazil Builds", da Pampulha, em Belo Horizonte, à Associação Brasileira de Imprensa, dos irmãos Milton e Marcelo Roberto, no Rio, projetos de 1939. Constam ainda o Grande Hotel de Ouro Preto, de Costa, e a Caixa D'Água de Olinda, erguida junto ao centro histórico da cidade, com sua fachada de cobogós.
"Eles eram corajosos", diz Ferraz, sócio de Francisco Fanucci no escritório Brasil Arquitetura, referindo-se aos arquitetos da época. E ressalta no livro uma qualidade pouco observada na maioria das vezes: as fotos mostram sempre o entorno, justificando a implantação. "Não fazem sentido livros de arquitetura em que os edifícios estão deslocados do contexto". Ferraz aponta outros ícones, alguns, na época, ainda por concluir, a exemplo do Parque Guinle, de Lucio Costa, e do Conjunto Habitacional Pedregulho, de Affonso Reidy, ambos no Rio.
"Está na hora de o Primeiro Mundo fazer uma revisão desse período", conclui o curador no Brasil, Carlos Eduardo Comas
Esses projetos já davam mostras do cunho social que permeava a postura dessa nova geração. Conta Pirondi que Costa pedia cuidado com o termo modernismo, que podia levar à ideia de um estilo. "O que eles tinham em mente não era um estilo, mas uma causa, a construção de um país moderno, contemporâneo, o que estava muito acima das questões estilísticas e estéticas."
De qualquer forma, o curador do MoMA, Philip Goodwin, e o fotógrafo Kidder Smith tiveram como norte a produção estética. E contaram com um precioso "olheiro" vindo do Brasil: Bernard Rudofsky, arquiteto e designer judeu que, após a guerra, decidiu continuar a vida e a carreira fora da Europa. Na Sociedade das Nações, começou a busca por um novo lar - por ordem alfabética. Escolheu a Argentina, para onde se encaminhou com a mulher, Berta.
Quando o navio atracou no Rio, porém, Rudofsky ficou tão encantado que abandonou seu método abecedário e desembarcou na cidade. Foram seis meses tentando se inserir no círculo dos arquitetos cariocas, em vão. "Eles formavam uma espécie de clube fechado", conta Cavalcanti, a quem a viúva de Rudofsky relatou as andanças do casal.
Acolhido em São Paulo, Rudofsky acrescentou um "o" ao seu nome e, como Bernardo Rudofsky, representou o Brasil em um concurso de design promovido pelo MoMA. Venceu e acabou por se estabelecer com a mulher em Nova York, onde continuou próximo da equipe do museu - gente como Philip Goodwin e Kidder Smith. Mas, é claro, o mentor era Costa, que dispensava holofotes. Tanto que até se divertiu - e nem fez questão de desfazer o equívoco - quando a equipe de americanos envolvidos na mostra o confundiu com um funcionário público, a quem solicitavam tarefas aquém de seu papel de arquiteto maior do país.
A exposição continuou repercutindo anos depois. Em 1947, uma das bússolas da arquitetura, a revista francesa "Architecture d'Aujourd'hui", dedicou uma edição aos modernos brasileiros, que estampava na capa o Ministério da Educação e Cultura. "A principal fonte da revista foi o 'Brazil Builds'", diz Cavalcanti. "Entre 1943 e 1947 se produziu muita coisa boa no Brasil, mas o livro 'Brazil Builds' certamente serviu à revista como principal referência."
O projeto dos modernos, que em sua vertente paulista revelou nomes como Vilanova Artigas, Oswaldo Bratke, Lina Bo Bardi, Paulo Mendes da Rocha, Rino Levi e Gregori Warchavchik, encontra seu ápice na construção de Brasília, em 1950 - e é aí que a história começa a mudar.
Por esse tempo, Max Bill, designer e arquiteto da escola funcionalista de Ulm, na Alemanha, visita o Brasil e não poupa uma certa crueza em sua análise, alinhando-se a alguns críticos estrangeiros e a vários nativos. "Para Max Bill, aquela arquitetura fantástica, com todo o seu frescor, tinha adotado algumas fórmulas que se repetiam. E ela estava mesmo caminhando para um certo formalismo", afirma Ferraz.
Lina Bo Bardi, que articulava pensamentos tão bem quanto criava móveis e edifícios, devolveu-lhe a crítica com um artigo na revista "Habitat", em 1951, intitulado "Bela Criança". Nele, a autora do Masp e do Sesc Pompeia, em São Paulo, avisa:
"A nova arquitetura brasileira tem muitos defeitos: é jovem, não teve muito tempo para se deter e pensar, nasceu subitamente como uma bela criança; concordamos que os brise-soleils e os azulejos são 'fatores intencionais', que certas formas livres de Oscar são complacências plásticas, que a realização não é sempre satisfatória, que certas soluções de detalhes não seguem a linha do conjunto (concordando nisso com os meus amigos europeus), mas não concordamos, entretanto, sobre o fato de que a arquitetura brasileira já marca estrada para uma academia (...)".
A defesa era justa, mas a crítica também era. Brises, colunas em V, azulejos e pilotis se proliferavam e se repetiam das maneiras mais arrevesadas. As "formas livres de Oscar", como ela coloca em seu artigo, eram as formas de um escultor, mais do que de um arquiteto. "Oscar Niemeyer foi importantíssimo, mas o Brasil foi monotemático em arquitetura por muito tempo", analisa Marcelo Ferraz.
Cavalcanti também situa nos anos 1950 o apogeu dessa produção. E seria improvável um apogeu eterno. "Depois de Brasília há declínio da produção moderna, pela exaustão do estilo e pela condição política brasileira, que muda a partir de então." Um fator decisivo para o declínio da produção arquitetônica brasileira foi o golpe de 1964, em seus 21 anos.
"Se há um crime maior cometido pelos militares foi a destruição completa da educação", lamenta Pirondi. "Cortaram educação e cultura pela base, fizeram surgir uma geração meio perdida, meio morta." Entre intelectuais e cientistas presos e exilados havia arquitetos, entre eles um dos nomes mais importantes da produção brasileira: Vilanova Artigas, que projetou a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, preso e em seguida exilado no Uruguai. Nas faculdades, os alunos já não tinham com quem aprender. "E, para uma cidade", afirma Pirondi, "é melhor um bom padeiro do que um mau arquiteto".
Em 1997, convidado pela embaixada do Brasil nos EUA para elaborar um guia de arquitetura contemporânea brasileira, Cavalcanti se negou. "Não via nada que fosse interessante." Preferiu oferecer um de arquitetura moderna, que se tornou um livro e é editado até hoje no exterior: "Quando o Brasil era Moderno".
Na entrada do ano 2000, começou-se a vislumbrar um novo cenário, com produção que vale a pena ser vista. Tanto que, em 2005, Ano do Brasil na França, Cavalcanti avançou no assunto e montou a mostra "Ainda Modernos? Arquitetura Contemporânea Brasileira", transformada em livro pela Martins Fontes.
Para o historiador, "a boa arquitetura praticada hoje é quase clandestina, de pequena escala". "E, se você focar a produção recente, sendo São Paulo o principal centro, nota arquitetos que citam o moderno o tempo todo, como Isay Weinfeld, Marcio Kogan, Angelo Bucci. O problema é que hoje tudo é regulado pelo mercado, pelo lucro e por pesquisas de gosto médio", diz Cavalcanti.
Seja como for, é simbólico que a arquitetura brasileira tenha vez novamente no MoMA. "Essa exposição é pragmática", resume Cavalcanti. "Não dá mais para ignorar a América Latina. Noto que há interesse, respeito e sobretudo disposição dos outros países para olhar o Brasil para além dos exotismos, o que é fundamental". No Brasil, o curador da mostra é o crítico e professor Carlos Eduardo Comas, de Porto Alegre.
A exposição deverá abranger a produção latino-americana entre 1955 e 1980. Segundo o curador, "esse foi um período de críticas ferozes à arquitetura brasileira em particular e à arquitetura latino-americana em geral". "Por volta dos anos 1970, Brasília era demonizada como a cidade que encarnava todos os males do modernismo. Com os novos panoramas arquitetônicos surgidos nos anos 1980, na Europa e nos EUA, simplesmente caímos no esquecimento. Está na hora de o Primeiro Mundo fazer uma revisão desse período", conclui Comas.
Para ele, "do ponto de vista formal, continuamos herdeiros do moderno, utilizando o seu vocabulário e a sua sintaxe". E Pirondi exalta sua virtude: "Há elementos na arquitetura moderna que são permanentes, como ventilação, iluminação, mobilidade. Imagine um país com marquises, com prédios elevados por pilotis, transformando as calçadas em pátios sombreados e abertos à população; casas com ventilação cruzada, painéis de vidro junto aos brises e cobogós atenuam o calor. Você não gostaria de viver num país assim? Eu gostaria."
Fonte: http://www.asbea.org.br/escritorios-arquitetura/noticias/arquitetura-tempos-modernos-289963-1.asp
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