O
essencial é invisível aos olhos
O pequeno príncipe.
Antoine Saint-Exupéry, 1943
Essência é a razão de ser e de atuar de um objeto
ou de um ente. Este conceito, fácil de entender e de conferir na natureza,
exige criteriosos processos de pensamento e de análise para transferi-lo aos
objetos da criação humana. A prática da arquitetura (da boa arquitetura)
consiste, dentre outras coisas, em materializar essências, isto é, em ter a
capacidade de pensar a forma conceitual de um objeto arquitetônico e a
criatividade e habilidade para materializá-lo em relações de proporções,
harmonia, racionalidade, viabilização técnica e construtiva e integração no
contexto. Pensamento e materialidade, teoria e ofício, conceito e objeto, intuição
e ordem, arquitetura e cidade constituem compromissos e atitudes que marcam a
profissão do arquiteto e que transcendem a própria construção de edifícios para
assumir a conotação de manifestação cultural de uma sociedade.
Os momentos transcendentes da
história tiveram materialização em edifícios e intervenções urbanas e
territoriais memoráveis, que constituem o legado cultural da humanidade ou de
uma sociedade. Nas épocas mais significativas, as relações essenciais entre os
fenômenos culturais do momento de produção e a materialização da arquitetura e
da cidade tiveram a maior aproximação entre forma conceitual e forma física,
isto é, entre essência e aparência. Em outros períodos de transição, menos
consistentes, essa relação não era tão evidente, com resultados ambíguos ou
contraditórios.
O pensamento que define a beleza
como manifestação da verdade, ou o predomínio do ser acima do parecer, ou da
essência determinante da aparência, tem manifestação em certos movimentos arquitetônicos
que persistem a consciência de projetar e construir tal como um edifício é, sem
elementos que possam ofuscar a natureza do objeto. Por natureza do objeto
entende-se a natureza dos próprios materiais, da própria função e da própria
circunstância de produção e adaptação ao contexto. Manifestos como “ornamento é
crime” de Adolf Loos, “menos é mais” de Mies Van Der Rohe, a verdadeira
expressão dos materiais e do processo construtivo da arquitetura brutalista até
o Roteiro para construir no Nordeste, de Armando de Holanda (1), são diferentes
expressões guiadas pelo conceito de projetar com transparência conceitual
evidenciada na materialidade da arquitetura.
Louis Kahn insistia, nos
ensinamentos e produção, na procura pela natureza do objeto, o que ele quer ser,
qual a vocação de um terreno, como construir um lugar, como diferenciar forma
conceitual de forma física e as diferentes alternativas de configuração. Na substância
deste pensamento, que vai às origens das coisas e sua realidade ontológica,
encontra-se a relação entre verdade e beleza (2).
Na prática da arquitetura, assim
como nos comportamentos humanos, o conflito entre ser e parecer se faz presente
constantemente. Alguns edifícios, que pretendem apresentar-se como manifestação
de poder o de status, tendem a ocultar realidades essenciais para aparentar
determinados interesses e conveniências perante a sociedade.
Quando a necessidade de aparentar
predomina acima do ser, estamos perante sinais de incerteza (no melhor dos
casos, de transição) na definição da própria arquitetura quanto das
intervenções na cidade. Essa parece ser a marca do momento atual, caracterizado
por um impressionante desenvolvimento tecnológico que define a era digital que
estamos vivenciando (sem ter um correlato coerente na construção dos espaços e edifícios
deste tempo e lugar), e uma volta à natureza promovida pelo esgotamento dos
recursos. A invasão avassaladora de novas tecnologias e processos parece ter
anestesiado, em nosso contexto social, o pensamento crítico em relação aos
valores essenciais de produção. De igual modo que um século atrás a arquitetura
de ferro e vidro da revolução industrial era maquiada por fachadas ecléticas ou
neoclássicas, hoje temos a sensação de estarmos usufruindo das facilidades
técnicas sem uma tradução coerente em edifícios ou espaços expressivos da
cultura do lugar, particularmente nos países em vias de desenvolvimento, nos
quais os recursos tecnológicos e a evolução construtiva não conseguem acompanhar
os progressos e alcances dos métodos de produção de projetos. A imitação e a
cultura da imagem parecem ter ganhado força como formas de dissimular uma
aparente incapacidade de transformar em realidade o que as técnicas de produção
de projetos facilitam.
A imitação está presente em diversas
etapas da produção de arquitetura, assim como a cultura da imagem disfarça a
verdadeira natureza dos objetos projetados. O mercado da construção oferece hoje
inúmeros materiais que imitam outros (plásticos que imitam madeira,
porcelanatos que imitam madeira, couro, metal, granitos, mármores), assim como
a facilidade de antecipar com imagens fotográficas os resultados dos projetos
permitem encobrir a verdadeira essência deles e substituir o pensamento crítico
pela sedução imagética. A consciência acerca da limitação na utilização dos
recursos naturais leva a imitá-los em outros materiais (o caso da madeira é o
mais evidente), provocando confusão acerca dos valores essenciais do ato de
projetar e construir, que tende a perpetuar materiais que a consciência
ecológica e os valores do mercado impossibilitam, ao mesmo tempo que se
disfarça a verdadeira natureza dos objetos projetados.
Entre original e cópia, construção e
apresentação, realidade e imitação, a cultura arquitetônica contemporânea
persiste um debate que atravessa séculos, baseado na relação entre essência e
aparência, entre transparecer a própria realidade do fato construído ou
ocultá-la atrás de máscaras que colocam em dúvidas a natureza mesma da
arquitetura. A cultura e implementação da crítica arquitetônica revela-se um processo
necessário para evitar o afago imagético que hoje envolve a prática
profissional e confunde os caminhos para uma produção com sentido de transcendência
e significado cultural, em uma época tensionada entre o desenvolvimento
tecnológico e a volta à natureza.
1-
HOLANDA,
Armando de, Roteiro para construir no
Nordeste. Arquitetura como lugar ameno nos trópicos ensolarados. IAB PE /
MDU UFPE, Recife, 2010
2-
KAHN,
Louis, Forma e design, Ed. Martins
Editora Livraria Ltda., São Paulo, 2010
Roberto Ghione é
arquiteto e Diretor do IAB/PE
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