O processo de urbanização das cidades está sujeito, em geral, à aplicação de um conjunto de leis que regulamentam as intervenções no espaço físico público e privado. Código de obras, leis de uso e ocupação do solo, de calçadas, de segurança, de isolamento térmico e acústico, de desempenho de materiais, de acessibilidade, de intervenção no espaço aéreo, de preservação do patrimônio, constituem um conjunto fragmentado, às vezes contraditório, de obrigações que devem ser cumpridas para atuar na cidade mediante a construção dos edifícios e a configuração do espaço urbano. Esta visão fragmentada leva, inevitavelmente, a uma intrincada burocracia, onde diferentes visões e interpretações se abstraem do fato principal, que é a configuração física e espacial de uma paisagem urbana e de uma organização funcional adequadas às necessidades e expectativas dos habitantes.
Atuar na configuração da cidade virou um processo baseado em um conjunto de abstrações genéricas acima de um fato físico real e concreto, cujas conseqüências ficam evidentes na construção de paisagens urbanas caóticas, fragmentadas e excludentes, baseadas na especulação fundiária e imobiliária. A ausência de planejamento estratégico e o imediatismo dos tempos e compromissos políticos impedem uma concepção integral e integradora, e submetem a configuração urbana aos interesses setoriais da iniciativa privada. A gestão da cidade, transformada em um grande palco de negócios, subordina o bem estar geral aos interesses do capital privado e compromete a própria sustentabilidade social e ambiental, sem planejamento de longo prazo e um projeto de cidade com objetivos claros e precisos em benefício da qualidade de vida social, que oriente efetivamente a ação dos gestores públicos. Neste contexto, a iniciativa privada constrói a cidade cumprindo todas as disposições legais, mas o resultado deixa muito a desejar. Graves problemas sociais, ambientais, de mobilidade e de (falta de) configuração do espaço urbano levam as cidades brasileiras a beira do colapso social, ambiental e funcional.
Elaborar projetos para as cidades torna-se um fato emergencial e urgente para substituir o improviso e a aplicação indiscriminada e acrítica de um conjunto de leis. Não se trata só de mudar as leis existentes, mas de adaptá-las a um projeto baseado em um conceito de cidade que integra todas as características definidoras da complexidade do fato urbano próprio e diferenciado, sem transferências de critérios legais de uma cidade para outra.
O desafio consiste em elaborar projetos para as cidades capazes de responder às particularidades que definem suas realidades históricas e ambientais, baseados na preservação do significado cultural e no respeito do território natural de suporte. Que marquem diretrizes para um desenvolvimento social e urbano efetivo para períodos de longo prazo. Que valorizem os recursos naturais e culturais que as diferenciam e determinam suas identidades. Que as integrem harmonicamente com o território e com outros centros urbanos em áreas metropolitanas. Que promovam um efetivo desenvolvimento com manutenção das características intrínsecas definidoras das particularidades e identidades sociais e culturais. Que valorizem os métodos de projetação arquitetônica e urbanística como instrumentos determinantes da forma urbana, como prioridade dos tradicionais indicadores abstratos. Que priorizem a compreensão e configuração emotiva dos espaços da cidade em substituição às abstrações numéricas. Que favoreçam o predomínio do critério para a tomada das decisões urbanas em substituição da aplicação acrítica e mecânica de leis genéricas. Que, em definitivo, estimulem projetos de cidade baseados na criatividade, na emoção e na efetiva valorização social e urbanística em substituição dos processos padronizados e burocráticos atuais.
Trabalhar para um projeto de cidade implica também uma mudança de concepção da própria arquitetura (a que configura a cidade lote a lote), do objeto isolado e autônomo para o objeto integrado em tecidos urbanos em consolidação, estimulantes de uma verdadeira apropriação pelos habitantes e da construção de uma paisagem urbana organizada e digna. Implica assumir atitudes e gestões participativas para definir as prioridades e expectativas sociais em beneficio do interesse geral. As cidades não podem mais ser construídas só com legislação, mas com projetos aos quais as leis devem se adaptar. Isso implica elaborar projetos coletivos baseados em decisões de consenso para nossas “casas grandes”, na definição de Leon Batista Alberti, com os instrumentos de projetação arquitetônica e urbanística e com intervenções públicas qualificadas pelo concurso de projetos.
Roberto Ghione é arquiteto e Diretor do IAB/PE
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