As cidades são organismos vivos. Pulsam através dos habitantes, que encontram nelas as oportunidades de desenvolvimento social e pessoal, que as transformam nos mais importantes centros de produção e difusão de cultura e conhecimento, que estimulam o difícil e necessário desafio de conviver e crescer em comunidade. Origem da democracia, nelas se aperfeiçoam, dia após dia, os complexos mecanismos de relacionamentos que definem os destinos dos diferentes interesses e os esquemas de poder que tentam prevalecer e dominar os espaços e as decisões em nome da maioria.
A construção do espaço urbano é a manifestação desses interesses e jogos de poder, assim como da inteligência e compromisso das gestões políticas que decidem e encaminham os destinos gerais dos habitantes.
Como organismo vivo, as cidades manifestam também doenças, deformações e alterações que se traduzem nos processos de urbanização, na materialização dos edifícios e espaços públicos e nos comportamentos das pessoas. Algumas dessas doenças afetam os tecidos urbanos e sociais, até o ponto de comprometer o normal desenvolvimento e regredir à situações de incivilidade e antiurbanidade, inconcebíveis se comparadas com a evolução de outros aspetos da tecnologia e do conhecimento contemporâneo.
Um problema central que afeta as cidades brasileiras é a violência urbana, fruto da persistente injustiça social e de atitudes de exclusão, que geram ódios e ressentimentos. O processo de urbanização, com substituição de tipologias estimulantes do convívio social por outras fechadas, excludentes e defensivas, alteram os vínculos e sistemas de relações entre os moradores. A progressiva “invasão” de novos tipos arquitetônicos e urbanos transformam, lote a lote, uma estrutura sadia de relações humanas e urbanas por uma psicose de medo e autodefesa. Como células malignas, modificam persistentemente a estrutura urbana, degradam o suporte natural do território, matam as possibilidades de convivência social e promovem o medo e a violência. De igual modo, condomínios fechados nas periferias reproduzem, em escala maior, os mesmos sintomas de exclusão das transformações lote a lote. Este processo, que na linguagem da medicina caracteriza-se como metástase, manifesta-se explicitamente na deterioração dos espaços públicos e dos recursos ambientais, assim como nos problemas de mobilidade e saneamento, que atingiram níveis alarmantes e colocam as cidades em situação de colapso.
Ao mesmo tempo, o declínio das áreas centrais – em muitos casos com rico patrimônio arquitetônico e cultural -, entregues ao abandono e descaso, assimila-se a estágios infeccionados de um corpo urbano decadente e agonizante. As invasões e ocupações ilegais de áreas não apropriadas para assentamentos e moradia humana nas periferias, sem controle de crescimento da mancha urbanizada, completam um quadro extremamente preocupante, que mobiliza as forças sociais na procura de garantias mínimas de urbanidade e civilidade.
As cidades brasileiras precisam, em caráter emergencial, iniciar processos de reconversão da decadência urbanística, que se reflete nos comportamentos sociais. Uma cidade que não estimula a convivência entre seus cidadãos, que os segrega em grupos alienados por pautas de comportamentos induzidas, que subordina o desenvolvimento a interesses setoriais minoritários, que não cuida do patrimônio cultural, não merece ser chamada de tal.
A reconsideração do modelo de construção das cidades brasileiras merece ser debatido e praticado com urgência para iniciar processos efetivos de tratamento e cura das graves doenças que afetam os tecidos sociais. A prática da arquitetura e do urbanismo é instrumento adequado e necessário para a circunstância de gravidade que as cidades manifestam. Planejamento racional e projetos elaborados com emoção e plena consciência de compromisso social merecem consideração, se o objetivo é o a acesso do país a patamares de efetivo desenvolvimento baseado na civilidade e na urbanidade de suas cidades.
Roberto Ghione é arquiteto e Diretor do IAB/PE
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