Para urbanista, insatisfação com transportes expõe graves distorções nas políticas públicas
Por Pedro Sprejer
Relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Raquel Rolnik acredita que a política urbana brasileira é historicamente dominada por uma coalizão entre interesses empresariais e políticos. Ela falou ao Prosa sobre o que vê como a exigência de um novo modelo de cidade no Brasil.
O que os protestos das ruas estão expressando?
Esse movimento, ou uma parte importante dele, é pelo direito à cidade. Na hora em que a pauta e a agenda dos protestos viram não apenas o valor da tarifa e a qualidade dos transportes, mas também saúde, educação e Copa do Mundo, o que temos é uma discussão sobre o modelo de cidade em que vivemos e o modelo de cidade que queremos. A questão das políticas de transporte e mobilidade são um componente muito importante, mas não exclusivo. Nós estamos falando de uma possibilidade para enfrentar esse modelo de cidade e transformá-lo completamente.
A corrupção emperra as políticas urbanas?
A ideia de que tudo não passa de um problema moral dos políticos corruptos, na verdade, esconde quem ganha e quem perde com o atual estado das coisas no Brasil. Esconde o que é verdadeiramente uma coalizão dominante na política urbana desse país, na qual políticos ganham a reprodução de seus mandatos, podendo ou não ganhar dinheiro para seus bolsos. Em contrapartida, os interesses empresariais ganham rios de dinheiro, taxas de lucratividade enorme, com a prestação de serviços muito ruins. Falam apenas dos políticos como se o mundo privado, as empresas corruptas, não fizessem parte.
Por que o transporte público no Brasil é tão ineficiente?
Há uma hegemonia do automóvel e do transporte sobre pneus na organização da cidade, baseada na ideia de transporte individual para poucos. Transporte público sempre foi coisa de pobre. Por isso nunca teve investimentos para ter qualidade. Além disso, o lobby e o cartel que as empresas concessionárias de ônibus têm historicamente na maior parte das cidades do Brasil é altamente lucrativo. Conheço prefeitos que tentaram e não conseguiram romper esse cartel porque ele tem uma força enorme nas câmaras municipais, elege vereadores, tem um poder enorme de conseguir fazer valer os seus interesses. As concessionárias de ônibus não são o único elemento: as empreiteiras de obras públicas que fazem pontes e viadutos viários também contam com uma enorme força política nessa coalizão que financia campanhas. Aí nós não estamos falando de campanhas de vereador, estamos falando de campanhas de prefeito, governador e presidente. Há uma relação forte entre o sistema político e os interesses empresariais que giram em torno dos serviços de obras públicas.
É possível que grandes protestos nas ruas deem margem a mudanças?
Desde a Constituinte, o direito à cidade para todos já era uma das pautas. A população cobrou isso nas ruas, mas essa ruptura não aconteceu. Agora é possível que ela aconteça. O Fernando Haddad (prefeito de São Paulo), por exemplo, está rediscutindo o contrato com as concessionárias de transporte coletivo agora. Com mais de 100 mil pessoas na rua dizendo “eu quero um transporte público de qualidade”, surge uma grande oportunidade para a prefeitura efetuar uma ruptura que não pode, não quis ou não conseguiu efetuar até hoje.
Há um questionamento maior em relação a forma de fazer política no Brasil?
Quando as decisões não são dialogadas, discutidas, trabalhadas, com os atingidos e com a sociedade brasileira, acabam gerando conflito ou acabam sendo judicializadas, que é o que aconteceu com Belo Monte. Entre as promessas da Constituinte, estava a ideia de uma democracia direta. Isso chegou a ser ensaiado em algumas cidades brasileiras ao longo dos anos 80 e início dos anos 90. Mas, na hora que apareceu muito dinheiro na jogada, proveniente do desenvolvimento econômico, essa pauta foi totalmente abandonada. E os partidos que estavam na oposição naquele momento, como PT e PCdoB, e carregaram essa bandeira, uma vez no poder, abandonaram essa agenda, que também nunca foi a agenda dos partidos de centro e de direita.
Quais consequências isso trouxe?
Claramente se viu o fortalecimento da hegemonia dos interesses corporativos na condução da política urbana no Brasil e isso foi acontecendo progressivamente. Nós derrubamos a ditadura, mas não derrubamos essa coalizão entre governo e empresários. E ela impediu que uma pauta pelo direito à cidade avançasse. Agora é uma oportunidade de fazer avançar essa agenda, porque, pela minha leitura, é isso que o povo que está na rua quer. Quando se fala de mobilidade para todos ou estádio para quem, estamos falando que não queremos que uma cidade seja construída apenas para negócios imobiliários, negócios em geral. Que a cidade é nossa, que coisas não lucrativas têm que acontecer. Então, é sobre a função social da cidade que falamos.
Como as manifestações em relação à organização da Copa dialogam com esses protestos?
Quem discutiu o projeto de Copa no Brasil e como ele seria feito, com quem ia ser feito, o que ia acontecer com os atingidos? É o que as manifestações na rua estão questionando. Como relatora do direito a moradia, recebi muitas denúncias de violações nas remoções na preparação para a Copa e Olimpíadas. Tudo isso tem a ver com um modelo de cidade absolutamente excludente.
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