Largo da Batata, © Folha Online, Miguel Schincariol, AFP
Ontem estive na manifestação contra o aumento das passagens em São
Paulo. Há muitos anos eu não via nada parecido. Aliás, é muito estranho a
imprensa falar em 65 mil pessoas na manifestação. Eu diria que tinha
muito mais que 100 mil… Pensando sobre o que aconteceu ontem, me lembrei
de quando, lááá atrás, nós estávamos derrubando a ditadura, lutando por
eleições diretas, reconstruindo as representações políticas do país.
Naquela época nós íamos pra rua com nossas próprias faixas, bandeiras e
cartazes, feitos em casa por nós mesmos, muito antes dessa era em que
candidatos a representantes são vendidos que nem sabonete ou outro
produto qualquer, com campanhas de marketing milionárias.
Aliás,
essa é uma das razões por que o direito à cidade – promessa que
fazíamos pra nós e pro Brasil naquela época – não avança. Porque
campanhas milionárias dependem de doações de interesses corporativos que
as financiam e que depois cobram a fatura, impondo suas pautas e
agendas na construção das políticas públicas. Essa é, portanto, uma
primeira questão entre tudo o que vi ontem: uma espécie de renascimento
de práticas já esquecidas, de retomada de reivindicações importantes, de
luta por direitos sociais básicos, além de muitas práticas e métodos
novos. Isso estava expresso em cartazes que falavam de “saúde, educação e
transporte pra todos”, por exemplo. Sinal de que a sociedade brasileira
está muito feliz de ter mais dinheiro para comprar mais coisas, mas que
isso não é suficiente.
Também me pareceu muito
visível o desejo de participação. As pessoas querem ser consultadas,
querem que suas opiniões sejam levadas em conta. A democracia
representativa no Brasil está claramente vivendo uma crise. Por outro
lado, o projeto de democracia direta, também anunciado décadas atrás e
já experimentado, claramente retrocedeu… Os conselhos, as consultas
públicas, no geral, foram esvaziados de conteúdo e, sobretudo, de poder
decisório. É importante reconhecer que não conseguimos avançar na
direção da construção do controle social sobre as políticas e o espaço
público. Especialmente a política urbana – completamente capturada por
esses interesses corporativos, entre eles, o das empresas de ônibus –
viveu até agora um grande retrocesso.
Obviamente,
essa não é uma questão exclusiva de São Paulo. As grandes manifestações
que ontem tomaram conta de cidades em todo o país – Rio de Janeiro, Belo
Horizonte, Vitória, Curitiba, Porto Alegre etc – comprovam. Outras
pautas presentes no ato que me parece importante mencionar foram a
defesa da não violência e do direito à livre manifestação – muito bem
expressa no bordão “que coincidência, não tem polícia, não tem
violência” –, e também o contexto pré-Copa do Mundo e Jogos Olímpicos
que estamos vivendo e que tem ensejado inúmeras violações de direitos.
Depois
do turbilhão de ontem, hoje de manhã participei da reunião do Conselho
da Cidade, que contou com a participação de representantes do Movimento
Passe Livre (MPL), que colocaram suas questões com muita clareza. O
prefeito Fernando Haddad, por sua vez, assumiu postura bem mais aberta e
flexível ao diálogo. Aliás, ele anunciou que a consulta pública da nova
licitação pra contratação dos serviços do transporte coletivo, que se
encerrava ontem, terá o prazo adiado. O mais interessante da reunião foi
que os conselheiros foram praticamente unânimes com relação à proposta
de imediata redução da tarifa, com revisão dos custos do transporte, dos
contratos, e abertura dessas contas.
A opinião
majoritária entre os conselheiros é que o prefeito tem diante de si uma
grande oportunidade de finalmente enfrentar, com o apoio das ruas, os
interesses que têm nos impedido de construir uma cidade inclusiva, para
todos. Evidentemente a resposta da prefeitura não pode ser simplesmente a
anulação do aumento, precisa ir muito além dessa questão (afinal, não
são 20 centavos!), em direção da construção de uma real ruptura com o
modelo rodoviarista, de uma política de mobilidade pactuada,
absolutamente includente, baseada no transporte coletivo, e na decisão
desses processos de forma participativa e com absoluta transparência na
contratação de serviços pela prefeitura.
A cidade
de São Paulo está vivendo um momento histórico. Estamos diante de uma
oportunidade única de começar a reverter o atraso da nossa política
urbana. Se conseguirmos de fato avançar, isso será importante não apenas
para os paulistanos, mas para todo o país e também para o mundo, já que
nossas reivindicações se relacionam fortemente com o que vem
acontecendo em outros países, como a Turquia e a Espanha, por exemplo.
Assim, esperamos que o prefeito Haddad compreenda a enorme chance que
tem diante de si.
Fonte: Blog da Raquel Rolnik
Cita:"São Paulo: a voz das ruas e a oportunidade de mudanças / Raquel Rolnik" 18 Jun 2013. ArchDaily,
19 Jun 2013.
<http://www.archdaily.com.br/br/01-121275/sao-paulo-a-voz-das-ruas-e-a-oportunidade-de-mudancas-raquel-rolnik>
0 comentários:
Postar um comentário