Projeto padrão

            A cidade se constitui, segundo Aldo Rossi (1), por elementos primários, ou estruturantes, e por tecido urbano secundário, ou acompanhante. Os estruturantes são aqueles edifícios e espaços singulares e significativos, que a sociedade tem como pontos de referência por serem sede de órgãos representativos da organização comunitária, de serviços públicos indispensáveis, de atividades de lazer e cultura ou espaços públicos de congregação. Esses edifícios e espaçostêm a vocação de definir a imagem da cidade, estruturar sua identidade, definir sua transcendência, marcar as características do tempo e lugar de atuação, valorizar a própria estrutura urbana e manifestar os valores culturais comprometidos com a contemporaneidade e com os desejos e expectativas da sociedade. Eles são motivo de particular atenção e, por possuir uma carga de significado tão importante, abertos ao debate e discussão pública com a participação das mentes mais esclarecidas. Eles se constituem nos monumentos da cidade, independente de sua escala e hierarquia, no sentido de superar o rotineiro para entrar na consciência cidadã como pontos referenciais de uma atividade ou de representação e significado. Tais empreendimentos ficam, por sua natureza, sob decisão e ação do poder público.

            Os acompanhantes são aqueles edifícios de fundo, que definem o espaço urbano e possuem padrão de certa repetição e subordinação às leis gerais de organização da estrutura urbana. Por sua natureza, tais empreendimentos são atribuição da iniciativa privada, com o correspondente controle e debate público quando o impacto deles atinge o funcionamento da estrutura urbana ou a própria imagem da cidade.

            O processo mais idôneo para a construção dos edifícios estruturantes e acompanhantes de impacto é o concurso público, mecanismo que garante a participação e debate de idéias para a estruturação de áreas de interesse geral e para a construção de novos significados para a cidade. Garante, de igual modo, a participação das pessoas mais esclarecidas para julgar e escolher as propostas mais apropriadas em representação da sociedade, mediante celebrações democráticas e transparentes. Decidir a construção de edifícios e espaços de interesse público através de concurso é uma marca de civilidade e de efetivo comprometimento com a valorização da cidade como lugar de vivência coletiva e da arquitetura como manifestação cultural.

            Não é este o procedimento que, em sentido geral, é seguido no Brasil. Salvo honrosas exceções, a urgência dos compromissos políticos e o conluio entre interesses públicos e privados determinam a construção de edifícios e espaços de interesse geral segundo decisões impostas, sem uma efetiva participação das melhores propostas, que poderiam promover uma efetiva transformação e valorização das cidades e dignificação das pessoas. Governantes e prefeitos apelam aos malfadados projetos padrão, licitações de carta marcada ou suspeitos notórios saberes para resolver urgências eleitoreiras, geralmente definidas entre as quatro paredes dos gabinetes de governo e cujos resultados tendem a ser de duvidosa qualidade. A urgência, ignorância e interesse atropelam a importância que deveriam ter intervenções destinadas a criar espaços de dignificação social e de manifestação cultural, substituindo-as por projetos medíocres, repetidos ou interesseiros, eliminando as possibilidades de escolha de alternativas melhores e de legitimar a utilização dos recursos públicos. Desta forma, perdem-se, uma após outra, oportunidades de efetiva valorização social e urbana e de participação profissional qualificada mediante o debate enriquecedor e de superação da crítica circunstância das cidades brasileiras. Hospitais-padrão, centros de saúde-padrão, bibliotecas-padrão, escolas-padrão, seja o que for-padrão levam ao anonimato e à completa desconsideração das características sempre cambiantes e atípicas dos diferentes bairros, setores urbanos, paisagens e efetivas necessidades e aspirações sociais. Os conceitos de identidade, variedade e diversidade são atropelados freqüentemente por falta de planejamento, participação e procura das melhores soluções para cada desafio.

            Experiências em outros contextos tem demonstrado a capacidade transformadora que possui a arquitetura bem projetada e construída, mediante processos participativos. Boa arquitetura, especialmente para a população mais pobre, realizada mediante gestões transparentes, tem uma vocação de transformação social impressionante (2).  Porém, a consciência brasileira em geral parece estar alheia a estes procedimentos de efetiva dignificação. As decisões impostas sem participação e oportunidades de escolha do melhor para a sociedade são a marca do subdesenvolvimento e a persistência de culturas de coronelismo e autoritarismo anacrônicos. Arquitetura e urbanismo são profissões desconsideradas e desvalorizadas em nosso contexto, dentre outros motivos, por falta de conhecimento acerca de sua potencialidade de transformação social mediante atuações de dignificação do espaço urbano. Enquanto não se criar consciência da capacidade de melhorar a realidade social, nossas sociedades continuarão mergulhadas no subdesenvolvimento e reclamando por melhor qualidade de vida urbana, sem imaginar o aporte que arquitetura e urbanismo podem oferecer mediante processos transparentes e participativos para a construção de uma cidade digna e integrada.

Notas:

1- ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade, Livraria Martins Fontes Editora Ltda, São Paulo, 1995

2- As transformações urbanísticas e sociais em Medellín e Bogotá são paradigmáticas, mediante intervenções participativas altamente qualificadas e gestões de desenvolvimento urbano transparentes e democráticas.

Roberto Ghione é Arquiteto e Diretor do IAB/PE

0 comentários:

 
IAB Tocantins Copyright © 2009 Blogger Template Designed by Bie Blogger Template
Edited by Allan