Desenhos de Andrea Palladio
Às mentes dos homens da Renascença as consonâncias musicais eram os testes audíveis de uma harmonia universal que mantinha um elo de união entre todas as artes. Essa convicção não era só profundamente enraizada na teoria, mas também –e isso é agora usualmente negado– traduzida na prática. É verdade, que em tentando provar que um sistema de proporções há sido deliberadamente aplicado por um pintor, um escultor ou um arquiteto, você é facilmente induzido a encontrar aquelas razões [ratios] que você estabelece para encontrar. Na mão dos acadêmicos, compassos não giram. Se quisermos omitir a armadilha da especulação inútil temos que buscar a orientação inequívoca dos artistas mesmos. Estranhamente, nenhum acadêmico até agora tentou fazer isso. Tal orientação não é muito comum, mas um cuidadoso levantamento certamente renderia considerável evidência. Deve-se, sobretudo, ser capaz de decifrar e interpretar as indicações do artista. Um exemplo deve mostrar o que quero dizer.
Ao final do seu primeiro livro, Serlio ilustrava um esquema geométrico como um guia à ‘correta’ construção da porta de uma igreja. Ele completa a porção central, na qual a porta deve ser posta, em um quadrado (desenhando uma linha paralela à base), desenha as diagonais (AB, CD) e erige desde os dois cantos da base um triângulo isósceles (AEC). As interseções entre as diagonais e os lados do triângulo (F, G) marcam a altura e largura da porta.[1] O desenho parece sugerir um procedimento geométrico, não muito diferente do método ‘ad quadratum’ praticado durante a Idade Média tardia. Em ambos os casos o padrão geométrico leva aos pontos focais aritmeticamente irracionais do desenho (ponto F, por instância, divide a diagonal CD (√2) assim como a linha AE (√5) em uma parte e duas partes). Mas no caso de Serlio, o esquema geométrico é posterior mais que anterior às razões escolhidas para a porta. Seu desenho era evidentemente o resultado de divisões comensuráveis do quadrado maior. A própria porta é um duplo quadrado, sua largura e altura no vão estão relacionadas ao lado do quadrado em 1 : 3 e 2 : 3, o marco da porta e a altura do frontão estão relacionados à largura da abertura em 1 : 3 e 1 : 2 respectivamente, e assim por diante. Assim uma série inter-relacionada de razões de pequenos números inteiros está realmente na base do desenho de Serlio. Geometria ‘Mediæval’ aqui não é mais que um verniz que permite aos praticantes alcançar razões comensuráveis sem muita demora. Porém há um material em mãos de uma natureza muito menos ambígua.
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Construção de uma porta. Do Primeiro Livro de Serlio
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O guia prático de longe mais importante para um sistema de proporções coerente conhecido por mim está incorporado nas ilustrações do Quattro libri de Palladio. Se apropriadamente interpretadas, elas não são menos chave ao problema da proporção harmônica que as teorias de Alberti. O segundo livro de Palladio contém seus próprios edifícios em elevação, planta, e seção, e são eles que devem agora ser considerados. As muitas discrepâncias entre as pranchas e os edifícios reais foram e são usualmente atribuídas à descuidada publicação.[2] Contudo o plano da obra inteira revela que Palladio não publicou seus edifícios meramente como uma contribuição autobiográfica. Ele fez uma declaração sobre esse efeito no prefácio ao Quattro libri com essas palavras: ‘No segundo (livro) eu devo tratar da qualidade das estruturas que são ajustáveis a cada categoria dos homens: primeiramente daquelas de uma cidade; e então da situação mais conveniente para vilas... E quando tivermos senão muito poucos exemplos dos antigos, dos quais possamos fazer uso, devo inserir as plantas e elevações de várias estruturas que erigi...’ Nessa lacuna muitas diferenças entre edifícios e pranchas podem ser explicadas.[3]
As ilustrações eram para ele um meio de expor suas concepções não só de planejamento mas também de proporção, por isso suas medidas teoréticas poderiam divergir das executadas. Se essa é uma dedução correta, a hipótese parece justificada que Palladio queria que suas medidas inscritas transmitissem razões de um caráter geral e de importância universal além do escopo de edifícios individuais.[4] Na maioria das suas plantas, as razões entre largura e comprimento dos recintos são proeminentemente postas e facilmente legíveis, enquanto –com a exceção de alguns detalhes em grande escala– é geralmente mais difícil de lê-las nas elevações. Para as alturas dos recintos, que são dadas somente nas relativamente poucas seções, ele frequentemente se refere em seu texto ao método empregado. Esses arranjos parecem revelar o esquema definitivo que propomos seguir ao nos confinar para o exame de alguns planos de Palladio.
Que tipo de proporção exemplificou Palladio, com suas medidas inscritas? A antiga Villa Godi em Lonedo contem o cerne da estória numa simples forma. Cada um dos oito pequenos recintos –quatro em cada lado do hall– medem 16 x 24 pés, isto é, largura : comprimento = 1 : 1 ½ que é uma das sete formas de recintos recomendadas por Palladio. A razão entre largura e comprimento é 2 : 3. O pórtico tem o mesmo tamanho de 16 x 24, enquanto o hall detrás dele mede 24 x 36; sua razão –1 : 1 ½ ou 2 : 3– é portanto igual àquela dos pequenos recintos e do pórtico. O uso da mesma razão ao longo do edifício é aparente. Mas além disso, a equação 16 : 24 = 24 : 36 mostra que recintos e hall são, pode-se dizer, proporcionalmente firmemente intertravados. A série subjacente ao plano como um todo é a progressão 16, 24, 36, que conhecemos da análise de Alberti da razão 4 : 9 como 4 : 6 : 9 e que pode ser expressa em termos musicais como uma sequência de dois diapentes. Desse modo, para aqueles que entendem a linguagem da proporção, o significado de Palladio foi deixado abundantemente claro pelas conspícuas inscrições das medidas nos planos; sem elas o leitor seria deixado sem chave alguma às intenções do arquiteto. Na outra mão, a notação das medidas tal como executadas teria interferido na claridade do conceito harmônico, pois a profundidade do pórtico é na verdade 14,9 pés em vez de 16 pés e as larguras dos dois recintos adjacentes são 15,5 e 17,3 pés.
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Villa Godi, Andrea Palladio
As razões das últimas estruturas de Palladio são algo mais complicadas como pode ser ilustrado na Villa Malcontenta. O menor recinto de cada lado do hall em cruz medem 12 x 16 pés, o seguinte 16 x 16 e o maior 16 x 24, enquanto a largura do hall é 32 pés. Desse modo, a consistente série 12, 16, 24, 32 é a nota chave para o edifício. Como num prelúdio o primeiro e último membros dessa série aparece na razão 12 : 32 do pórtico, que é um diapasão e diatessarão (isto é, 12 : 24 : 32). O intercolúnio do centro (6 pés) está relacionado à profundidade do pórtico (12) em 1 : 2. Os intercolúnios menores são de 4 ½ pés; eles estão relacionados ao central em 3 : 4 que, incidentalmente, é a razão dos recintos menores. Finalmente, o diâmetro das colunas, 2 pés, representa a menor unidade, o módulo, e através de um processo de multiplicação começando por dois todas as razões do edifício podem ser derivadas.[5]
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Villa Malcontenta, Andrea Palladio
Uma orgânica estrutura desenvolvida a partir do módulo, a ‘regola homogena’, não tem espaço para quantidades incomensuráveis; entretanto, a aplicação do módulo não necessariamente significa que as razões ao longo de todo um edifício devam ser harmônicas. Mas o vínculo sistemático de um recinto a outro através de proporções harmônicas foi a novidade fundamental da arquitetura de Palladio, e nós acreditamos que seu desejo de demonstrar essa inovação teve um seguimento na escolha e caráter das pranchas e da inscrição das medidas. Aquelas relações proporcionais que outros arquitetos aproveitaram para as duas dimensões de uma fachada ou para as três dimensões de um único recinto foram empregadas por ele para integrar toda uma estrutura.
A demanda que ‘as partes devem corresponder ao todo e a cada uma’ era geralmente aderida em igrejas, para a relação entre nave central, naves laterais e capelas, e aqui a Renascença poderia construir sobre tradições medievais. Mas para edifícios domésticos o passo decisivo foi dado por Palladio.[6] Ele formulou suas visões sobre esse ponto numa sentença muito importante que acrescentará peso à nossa análise de duas de suas villas:‘Mas os recintos maiores com os medianos, e estes com os menores, devem estar de maneira partilhada [compartite], que (como eu disse outrora) uma parte do edifício corresponda a outra, e assim todo o corpo do edifício pode ter em si mesmo uma certa harmonia [convenienza] dos membros, que o renda todo belo e gracioso.’[7]
Uma familiaridade cabal com as ideias da Renascença sobre proporção é frequentemente necessária para entender a legitimidade das razões dadas por Palladio. Na Villa Emo, quartos de 16 x 16, 12 x 16, 16 x 27 enquadram o pórtico (também de 16 x 27) e o hall (27 x 27). A razão 16 : 27 só pode ser entendida desmembrando-a da maneira como Alberti nos ensinou; ela deve ser lida como 16 : 24 : 27, isto é, como uma quinta e um tom maior (= 2 : 3 e 8 : 9) e similarmente a razão composta 12 : 27 pode ser gerada desde 12 : 24 : 27, isto é, uma oitava e um tom maior (= 1 : 2 e 8 : 9). Desse modo as figuras 27, 12, 16 que, escritas uma sob a outra, atinge os olhos do leitor, são perfeitamente inteligíveis em termos de geração de razões. Razões da mesma ordem são encontradas nas alas; 12 é novamente o termo médio, dessa vez inscrito entre 24 e 48. O caráter harmônico dessa série é óbvio (2 : 1 : 4, 1 : 4 sendo duas oitavas = 1 : 2 : 4). O edifício inteiro aparece agora como uma orquestração espacial dos termos consonantes 12, 16, 24, 27, 48.[8]
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Villa Emo, Andrea Palladio
O mesmo tema foi desenvolvido em outras estruturas com diferentes medidas. A Villa Thiene em Cicogna tem 4 como módulo (diâmetro das colunas) e os recintos são baseados na série harmônica 12, 18, 36. Nos quatro cantos estão recintos quadrados medindo 18 x 18 pés; eles flanqueiam uma sala em duplo quadrado, 18 x 36, e essa razão é repetida nos dois pórticos que flanqueiam o hall que é de 36 x 36 pés, isto é, quatro vezes o tamanho dos pequenos recintos dos cantos. A progressão 18 : 18, 18 : 36, 36 : 36 é quebrada entre os pequenos quadrados e os pórticos por recintos medindo 12 pés em largura, assim a sequência 18, 12, 18 (3 : 2 : 3) é repetida quatro vezes.[9]
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Villa Thiene, Andrea Palladio
Progressões de 1 : 1, 1 : 2, 2 : 2 usadas na Villa Thiene ocorrem em outros edifícios. Recintos de 20 x 20, 20 x 30, 30 x 30 formam o núcleo do Palazzo Porto-Colleoni, e razões baseadas na série 12, 16, 18, 24, 27, 32, 36 são frequentes.[10] Todas essas proporções espaciais têm seu equivalente nas consonâncias da escala musical grega. Porém estamos longe de sugerir que Palladio, enquanto planejava edifícios, estava conscientemente traduzindo proporções musicais em visuais. Francesco Giorgi, em seu memorandum, não estabeleceu provar a aplicabilidade de consonâncias musicais na arquitetura, mas trabalhou com elas para o desenho de S. Francesco dela Vigna como um procedimento mecânico óbvio.
‘As regras da aritmética’, disse Daniele Barbaro, elaborando Vitrúvio,[11] ‘são aquelas que unem Música e Astrologia: pois proporção é geral e universal em todas as coisas dadas à medida, peso e número.’[12] Nós temos a própria palavra de Palladio para isso, que para ele as proporções dos sons e no espaço eram intimamente relacionadas, e ele deveu ser consciente da validez universal de um mesmo e único sistema harmônico. Essas eram convicções que pertenciam à constituição intelectual geral da Renascença, e ela não precisava de sofisticação particular alguma para traduzi-las à prática.
Notas
[1] As letras, ausentes na xilografia de Serlio, foram aqui adicionadas.
[2] Ver por instância O. Bertotti Scamozzi, Les Bâtimens et les desseins de André Palladio, 1776-83, I, p. 8, e T. Temanza, Vita di Andrea Palladio, 1762, pp. 15, 44.
[3] Equívocos obviamente ocorrem, como por instância quando a largura do hall da Villa Saraceno em Finale é dada como 18 pés em vez de 28. Porém além desses lapsos Palladio teve frequentemente muito boa razão para alterações entre edifício e prancha. Uma razão era que ele não queria deixar à posterioridade os desenhos das estruturas que ele havia construído muito tempo atrás e que já não mais o satisfaziam. O caso mais conspícuo é aquele da Villa Godi Porto em Lonedo, iniciada em 1540 (isto é, trinta anos antes da publicação do livro), a frente da qual era retrógrada em estilo. Isso foi ‘sobrecarregado’ na prancha e os princípios do recente estilo foram gravados sobre o antigo edifício. Em outros casos Palladio ajustava irregularidades que lhes eram impostas por circunstâncias. O Palazzo Valmarana teve que ser planejado para um sítio irregular. Na prancha ele mostra uma planta regular tal como ele teria construído num sítio ideal. No texto ele nem sequer menciona que deu a planta como ele teria gostado de construí-la, e não como ela foi construída.
[4] Que Palladio esperasse que o observador inteligente desenhasse suas próprias conclusões sobre o significado de suas medidas é claramente indicado por uma sentença em sua carta a Conte Giulio Capra a quem ele enviou seus planos do Redentore para crítica. A escala nos pés da elevação, ele destaca, substitui todas as explicações (Bottari, Lett. pitt., 1822, p. 562).
[5] A única medida nesse edifício que não é facilmente inteligível é o comprimento do hall, que mede 46 ½ pés, onde se haveria esperado 48 pés. A medida pode ser analisada em mais de uma maneira, por instância como 6 x 7 mais 4 ½ (6 e 4 ½ sendo as larguras dos intercolúnios), mas eu não posso oferecer uma explicação completamente satisfatória.
[6] Não seria difícil dar exemplos anteriores que mostrem tendências similares. Mas até onde podemos ver, nenhum dos antecessores de Palladio desenvolveram esse problema sistematicamente. Francesco di Giorgio parece ser o único que o discutiu teoricamente em seu tratado sobre arquitetura; ver Promis, Trattato di architettura civile e militare di Francesco di Giorgio Martini, 1841, prs. 1, 2. Ver também E. Langenskiöld, Michele Sanmicheli, Uppsala, 1938, p. 191 e figs. 92, 93.
[7] Livro II, cap. 2.
[8] A profundidade dos recintos nas alas é 20; as razões da profundidade às larguras dos recintos (12, 24, 48) será explicada na seção seguinte.
[9] Esta descrição segue os números inscritos. Pode-se, claro, também ler 18, 12, 36 (comprimento do pórtico).
[10] Por instância, Villa Pojana (18, 36), Villa Trissino em Meledo (12, 18, 36), Villa Sarego em Santa Sofia (12, 18, 24, 36), Villa Cornaro em Piombino (16, 24, 27, 32). Em todos esses edifícios encontram-se, juntamente com essa série básica, outras figuras que precisariam mais explicações.
[11] Comentário sobre o livro I, i, 16.
[12] A conotação teológica é evidente, ver Wisdom of Solomon, XI, 20: ‘Mas com medida e número e peso ordenaste todas as coisas.’ Essa passagem foi frequentemente citada em suporte da crença cristã na virtude plural dos números. Luca Pacioli em seu Summa de Arithmetica, Venice, 1494, dist. VI, trat. 1, art. 2 (2ª ed. 1523, f. 68 v.) refere-se a ela com referência a Santo Agostinho.
© Tradução: Igor Fracalossi
Referência: Rudolph Wittkower, "Palladio's 'fugal' System of Proportion", em seuArchitectural Principles in the Age of Humanism, 1949.
Fonte:Igor Fracalossi. "O Sistema de Proporções ‘Fugal’ de Palladio / Rudolf Wittkower" 19 Mar 2015. ArchDaily Brasil. Acessado 20 Mar 2015. http://www.archdaily.com.br/br/763772/o-sistema-de-proporcoes-fugal-de-palladio-rudolf-wittkower
O Sistema de Proporções ‘Fugal’ de Palladio / Rudolf Wittkower
Autor: iabtocantins
| Publicado em: sexta-feira, março 20, 2015 |
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