O controle do imaginário na Arquitetura

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O controle do imaginário se observa quando a sociedade, por meio de suas instituições, precisa separar no campo da expressão aquilo que é socializável do que não é. O controle é mais sofisticado que a censura, supõe a deslegitimação de tudo que procura se contrapor a um valor vigente, sem que esse valor precise ser explicitado. Apesar de originalmente destinado à crítica literária o conceito pode ser facilmente transposto para a arquitetura de nossos dias, tal como ensinada nas faculdades e praticada nos escritórios. Pode ser exercido em nome do “mercado de trabalho”, pelo viés político, ou mesmo em nome de um purismo fundamentalista da arquitetura das vanguardas do século XX.
Isto não se dá sem uma grande perda da criatividade. É como se a Universidade estivesse neurótica e temesse uma formação crítica.
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         Ludwig Hilberseimer, Metropolisarchitecture (1926)
A rigidez sisuda do racionalismo bauhausiano é uma das mais importantes inspirações para o controle do imaginário.
Tomei contato com o conceito de “controle do imaginário” em um ensaio de Luiz Costa Lima[1] de 2013. Segundo o autor o controle do imaginário se observa quando a sociedade, por meio de suas instituições, precisa separar no campo da expressão aquilo que é socializável do que não é. É diferente de censura, que supõe normas legais cuja infração acarreta punições. O controle é mais sofisticado, supõe a deslegitimação de tudo que procura se contrapor a um valor vigente, sem que esse valor precise ser explicitado. Apesar de originalmente destinado à crítica literária, objetivando romances que romperam as barreiras do controle da imaginação atuantes nas sociedades de cortes católicas dos séculos XVI e XVII, como o faz o autor citado, o conceito pode ser facilmente transposto para a arquitetura de nossos dias, bem como para qualquer área do conhecimento acadêmico.
No caso atual das faculdades de arquitetura existe uma tendência de orientá-las como repositores de mão de obra para o mercado de trabalho,um termo que desfruta de um grande prestígio na argumentação, e serve como instrumento forte de convencimento, embora não resista tão valentemente a um questionamento mais sério, considerando-se dados culturais. Fosse sempre assim predominante e perderíamos o melhor que a arquitetura produziu desde a invenção da academia. Não teriam havido figuras como Le Corbusier, ou a nossa arquitetura moderna de vanguarda, que mudou radicalmente as práticas dos escritórios e do ensino de arquitetura. O tal mercado de trabalho não ajuda na definição de dados importantes relacionados com a atividade crítica da profissão, mas apenas leva em consideração demandas imediatas das empresas que procuram a mão de obra dos estagiários e arquitetos recém-formados. Esta orientação mercadológica é um dos pilares do imaginário na arquitetura na nossa sociedade, mas existem outros. O “mercado” não é a única maneira de legitimar o comportamento acadêmico na arquitetura.
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     Escritório de Norman Foster
O mercado de trabalho, com suas promessas de prosperidade e sucesso motivam o controle do imaginário.
Uma outra forma de controle é pelo viés político. Foi utilizado durante as primeiras décadas de vida do Movimento Moderno, que como se sabe tinha uma manifesta inspiração marxista.[2] Era dito então que os “modernos” eram adeptos da causa socialista. Aqueles que aceitavam as ideias capitalistas e liberais eram apenas ”contemporâneos”. Ainda hoje é uma forte matriz de controle. O mínimo que se pode dizer deste tipo de cerceamento é que é despregado da realidade. Podemos exemplificar citando a estética buscada pelo socialismo soviético, nos anos 1920, e que sufocou o pensamento das vanguardas, afim com a Bauhaus, substituindo-o por um novo classicismo monumental, muito semelhante àquele do Nazismo e do Fascismo, seu oposto político. Mais adiante, o movimento auto intitulado Arquitetura Racional (Tendenza) ocorrido na Itália sobretudo nos anos 1960 e 1970, movimento, contíguo ao Neorrealismo, e liderado por Aldo Rossi, entre outros, tinha também uma grande inspiração socialista.  No entanto, suas fontes imagísticas eram a arquitetura do estado fascista, dos anos 1930 e 40.[3] Por sua vez, a estética bauhausianas, socialista, foi encontrar-se e maturar no epicentro do capitalismo liberal, em Harvard (Cambridge, Massachusetts) com Gropius, Breuer e outros e no IIT (Chicago Illinois) com Mies van der Rohe. Jocosamente foi chamada de Bauharvard. Tudo isso prova que não existe nenhuma relação obrigatória entre imagística e política. Esta relação estabelece-se por contiguidade como em qualquer processo cultural.
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Conjunto Gallaratese II.Milão, 1970. Aldo Rossi
Arquitetura Racional (Tendenza)   tinha também uma grande inspiração socialista.  No entanto suas fontes imagísticas eram a arquitetura do estado fascista.
A aplicação rígida da carta dos protocolos da chamada poética maquinista[4]— economia, objetividade, anti-individualismo, a orientação funcionalista do espaço, a diferenciação através da volumetria, o anti-historicismo, a dessemantização etc. — que orientaram o fazer arquitetônico a partir dos anos 1920 e nas décadas seguintes, é outra forma de exercer o poder por meio de práticas arquitetônicas. Este cerceamento se exerce nas faculdades e nos escritórios de arquitetura, evitando qualquer tipo de desvio daquilo que é dito “científico”, socialmente aceito pelo público e pela episteme vigente. [5]
Estes saberes não têm nada de científicos, apesar de se apresentarem assim, no mais rígido sentido positivista – a verdade como resultante de um processo de experiência e erro. São, na verdade, resultado de práticas sucessivas orientadas pelo gosto, tal qual este se forma nas estruturas culturais, e pela autoridade de alguns próceres. Vide por exemplo a carta de princípios de Le Corbusier expressa em “Por uma arquitetura”.
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Sony Building (AT&T). Johnson e Burgee. N.Y, 1981-4
O historicismo,  tratado com liberdade, a simbolização, o humor tiveram vez na grande arquitetura dos anos 1980, até motivar uma violenta reação fundamentalista na academia.
Obviamente, não existe nenhum processo de aprendizado artístico (arquitetônico consequentemente, desde que se veja a arquitetura como arte e não como prestação de serviços técnicos) no qual não exista cerceamento e censura estética. Neste ponto podemos acusar uma semelhança entre tal aprendizado e o processo civilizatório, qual visto por Freud, em trabalhos dos seus últimos anos vida[6]. Segundo este, a civilização poupa os homens das principais fontes de sofrimento, cobrando-lhes entretanto, sacrifício de suas pulsões.
Há, é certo, um processo repressivo no treinamento artístico, uma vez que as ideias imediatas e primitivas da criação artística, as quais identificamos com as pulsões freudianas, são caóticas e amorfas. Dar forma às intenções artísticas implica pois em direcioná-las em um sentido socialmente desejado e aceito.
O problema acontece quando este processo se torna por demais intenso, sacrificando qualquer laivo de criatividade, em nome de uma estética já consagrada e que não pretende tolerar modificações, que comprometeriam suas estruturas. Neste ponto, se continuarmos com a metáfora freudiana, o processo se assemelharia à neurose, um desequilíbrio no Eu, quando prevalecem os sistemas repressivos sobre os criativos.
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Falkestrasse Office, Viena. Coop Himmelb(l)au
Apesar de ser melhor acolhido que as tendências historicistas e regionalistas, o estudo do  Desconstrutivismo não é incentivado nas disciplinas de projeto.
O controle do imaginário precede grandes feitos artísticos, que abalaram as estruturas da cultura ocidental.
Quem não conhece o Salon des Refusés, Paris, 1863, um marco para o surgimento da pintura moderna, onde foram expostas obras recusadas pela Real Academia Francesa de Pintura e Escultura de Courbet, Manet e Cezanne que encabeçavam o movimento Impressionista e seria responsável pela renovação da pintura. O Salão acabou sendo um forte concorrente do oficial.
Na arquitetura, a partir dos anos 1960, o Movimento Moderno teve seus princípios abalados por grandes cismas, a começar pelo Brutalismo. Alguns temas, como o historicismo, o regionalismo, o grotesco, a decoração aplicada às superfícies, a monumentalidade, e alguns temas urbanos como mobilidade, vieram a desviar os rumos do ascetismo moralista das vanguardas e do Estilo Internacional, combatendo-lhe a leveza e frivolidade. De tal maneira que o ambiente acadêmico se viu arejado por um vasto horizonte de possibilidades de pensar que um universo de novas formas começou a povoar as cidades. Temas que haviam sido afastados ou diminuídos pela arquitetura do Estilo Internacional, como o historicismo, o regionalismo, o monumentalismo, o decorativismo, voltaram a ter prestígio nos projetos arquitetônicos. A arquitetura então consagrada no entre guerras começa também a enfrentar uma critica calcada em novos preceitos, como o da crise energética e da sustentabilidade.

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Édouard Manet. Almoço na relva. 1863. 
Grandes mudanças, como a ocorrida na pintura no século XIX, são precedidas de controle doimaginario.por parte da academia.
No final dos anos 1980, vimos florescer na arquitetura um novo corpo de ideias, vindas da filosofia e da literatura, chamado, por contiguidade com pensamento filosófico, de Desconstrutivismo. Este foi melhor aceito nas hostes conservadoras da academia do que as ideias do dito Pós-modernismo. Talvez porque os seus temas não se afastassem tanto do objeto puro do Primeiro modernismo, apenas o desconstruía. Era também uma formulação abstrata. Já o Pós modernismo trazia de volta novas inspirações como a linguística, e resgatava antigas praticas como e o corte fenomenológico, o contextualismo e o historicismo, rechaçados pelo primeiro modernismo.
A reação a este novo fazer, a estas novas poéticas, veio violenta e fundamentalista. A poética pós-modernista sofreu na academia, após um primeiro momento de ebulição, todo o cerceamento que caracteriza o controle do imaginário. Tudo que se afastasse dos fundamentos poéticos do primeiro modernismo, aquele das vanguardas, da Bauhaus, do neoplasticismo holandês, seria deslegitimado, rechaçado, impedido de prosperar como ideia. O Desconstrutivismo, embora não rechaçado, era apenas, e estrategicamente, desincentivado.
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Conjunto na Rua frei Caneca. Rio de janeiro. 2013.
Na arquitetura de interesse social, o desempenho dos arquitetos tem sido desastroso. E como se não coubesse uma abordagem estética do problema. Somente técnica e financeira.
O que se faz hoje nas faculdades, descontando os temas próprios do século XXI, como a sustentabilidade e o produtivismo massacrante das indústrias ligadas à construção, pouco difere das práticas legitimadas pelas vanguardas arquitetônicas, já velhas de um século, e toda a crítica do final do século XX se perdeu, calada que foi por um controle do imaginário.
Voltando a metáfora freudiana, isto não se dá sem uma grande perda da criatividade; é como se a Universidade tivesse um superego forte e atuante. É como se a Universidade estivesse neurótica. Para uma formação acrítica e obediente ao mercado, nada melhor.


[1] Luiz Costa Lima (São Luís, MA, 1937). Pesquisador de crítica literária. É professor do Instituto de Letras da UERJ e do Departamento de História da PUC-RJ. Seu recente trabalho O controle do imaginário e a afirmação do Romance (2009), recebeu os prêmios de Ensaio da Biblioteca Nacional e da Academia Brasileira de Letras.
[2] Ver KOPP, Anatole. Quando o moderno não era um estilo e sim uma causa.
[3] Ver também neste Blog, o artigo A poética da arquitetura de interesse social.https://coisasdaarquitetura.wordpress.com/2013/06/02/a-potica-da-arquitetura-de-interesse-social/.
[5] Empregamos o termo episteme no sentido que Michel Foucault dá ao termo, ou seja, um fiel atrelamento aos paradigmas gerais segundo os quais se estruturam, em uma determinada época, os múltiplos saberes ditos “científicos” que orientam as práticas acadêmicas. No caso, arquitetônicas.
[6] FREUD, Sigmund . O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. V. 21. Rio de Janeiro, Imago, 1974.

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