A construção de lugares em uma cidade é o signo de uma prática urbanística comprometida com a civilidade. Uma sociedade civilizada constrói e usa os espaços públicos para manifestação social, para uso cotidiano, para expressar a cultura do dia a dia tanto como dos eventos que marcam a rotina cultural da cidade. Uma sociedade civilizada constrói o presente com respeito pelas heranças culturais traduzidas em patrimônio arquitetônico e com a consciência do legado que o mesmo significará para as próximas gerações.
Uma sociedade
civilizada procura integrar os diferentes setores com políticas de promoção das
classes menos favorecidas e com plena consciência que o bem estar geral provém
de um desenvolvimento social justo e inclusivo. Uma sociedade civilizada coloca
as pessoas, especialmente aquelas que mais precisam, no centro das decisões
políticas e urbanísticas. Uma sociedade civilizada, em definitivo, constrói a
cidade para as pessoas, ou seja, uma cidade de lugares.
A estratégia para a construção de uma cidade de lugares passa pela promoção do uso misto, a "promiscuidade urbana" defendida por Jane Jacobs mais de 50 anos atrás, com estímulo da presença constante de pedestres nas calçadas e com controle espontâneo do espaço público pela própria vivência das pessoas. Passa, também, pela qualidade conceitual e técnica dos espaços públicos: bons projetos com bons materiais e bem construídos em toda a cidade, desde o centro até os bairros populares. Passa pela construção de edifícios em áreas urbanas carentes que estimulam o desenvolvimento social e cultural e a divulgação do saber e do conhecimento como antídotos contra o crime e a violência.
As práticas urbanísticas na maioria das cidades brasileiras hoje se empenham na construção de "não lugares" , espaços e edifícios que agridem qualquer intento de estímulo à convivência social, especialmente na "cidade formal", projetada e aprovada de acordo com as leis municipais. Resulta contraditório constatar que favelas e bairros populares "informais e ilegais" são as estruturas urbanas que mais tendem a constituir lugares e a estimular o convívio entre as pessoas. A própria necessidade e solidariedade promove sistemas de convivência que, aparentemente, resultam inaceitáveis para a sociedade dita "formal e organizada", que constrói estruturas defensivas que só estimulam a violência e a marginalidade, sob a conivência do sistema legal de leis de uso e ocupação do solo vigentes.
Alguma coisa está muito errada no paradigma de cidade que estamos construindo, a começar pelas decisões acerca da sua configuração serem determinadas não por arquitetos e urbanistas capacitados e comprometidos com a criação de lugares que estimulam a celebração dos espaços públicos - profissionais teoricamente formados para isso -, mas pela burocracia administrativa e setores da sociedade que impõem privilégios e poderes para construir e comprar favores amparados em uma legislação omissa a um conceito de integração urbana e inclusão social. Arquitetos atuam dentro do sistema legal, não como agentes de transformação e de construção, mas como elementos de manipulação de interesses alheios ao conceito de cidade necessária e possível.
A consciência acerca da dimensão histórica é outro aspeto negligenciado na construção da cidade contemporânea. A velocidade das transformações solicitadas pela oferta de lucro imediato subordinam as intervenções a tempos de curta duração, que provocam transformações irreversíveis na configuração da paisagem urbana e dos comportamentos sociais em função do interesse de poucos. A necessidade de planejamento de longo prazo e de ações políticas em defesa do interesse geral tornam-se indispensáveis para corrigir os desvios do caminho histórico de construção de uma cidade que promova a vivência e o desenvolvimento físico e social, com a inteligência e a sensibilidade necessárias para criar os lugares estimulantes de um convívio civilizado e promissor.
Roberto Ghione é arquiteto e diretor do IAB/PE
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