Oscar Niemeyer: fábula de um arquiteto, por Escritório de Arquitetura Thobias

A vida é um sopro

Nasceu na heroica manhã da arte e da arquitetura modernas. Seus conterrâneos queriam ressuscitar volutas jesuíticas, projetavam paredes bordadas com argilas oitocentistas e, quase cegos, admiravam supostas belezas arquitetônicas de perto (quando o olho é tato). Em meio a espectros formais, o futuro Arquiteto recebeu ensinamentos clássicos. Desprezou as cariátides, as escócias, os astrágalos, os tríglifos, as métopas, os filetes e as caneluras e todo o vocabulário Vignolesco. Cultivou os piani nobili, as hierarquias, os embasamentos, a ênfase das entradas.

Desde Imhotep-Inventor-de-Pirâmides, jamais um arquiteto desfrutou de sorte tão unânime. Participou das sessões de milagres ocorridas quando Le Maître des Cinq Points de l'Architecture Moderne aportou nestas terras brasílicas e, num repente, tudo mudou; quando a arquitetura nativa adquiriu uma voz enfática e suave, repleta de terraços, de janelas contínuas, de fluidez urbana. Gerações descobriram que a verdadeira arquitetura é incêndio que se propaga pelo espaço circundante, iluminando-nos. Naquelas tardes de inflexões históricas, o Arquiteto herdou sistemas estruturais regulares, racionais e homogêneos, no interior dos quais há volumes independentes; legou pilotis monumentais.

Conheceu um prefeito repleto de carisma e sorrisos, que queria projetos de edifícios ao redor de um lago. O Arquiteto infundiu vida nos ásperos materiais de construção, curvou e recortou lajes, confundiu as paredes e a cobertura de uma capela. O prefeito elegeu-se governador. O Arquiteto seguiu-o. O governador elegeu-se presidente da República. O arquiteto seguiu-o. E o presidente logo aventurou-se em lonjuras infindas, buscando um pedaço de céu, de terra e de sol para elevar uma capital. Outro Arquiteto, Luminoso Mestre de Mestres, traçou a caligrafia do chão, costurando caminhos e fornecendo um leste. Tratores enfileiraram-se na poeira avermelhada das alvoradas, que ressurgiam, a cada dia, organizadas em eixos. O Arquiteto recebeu a tarefa de criar todos os principais edifícios da nova urbe. Moldou o vento, a poeira, o concreto e salpicou volumes elementares no planalto agreste.

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Naquela colheita de edifícios, terminou de estabelecer seu repertório. A memória dos volumes precisos de Étienne-Louis Boullée, Claude-Nicolas Ledoux et alii regularam-lhe a fantasia, estabelecendo uma língua sintética, de morfemas (apud Mahfuz) que geravam um roteiro repetitivo (diriam uns) e coerente (diriam outros) por todos os espaços e de todas as idades: barras horizontais, calotas, torres, prédios-viga, cilindros, marquises, plataformas, cascas. Criou edifícios que pouco tinham a ver com tradições brasileiras. Mas tão vigorosas eram suas criações que dobrou a tradição até encaixá-la na sua própria arquitetura. Até tornar-se O Brasil.

Desde Dinócrates de Alexandria, jamais um arquiteto desfrutou de sorte tão vasta. Quando completou meio século, a Vox Populi já o reconhecia como o maior arquiteto do País. Veio um governo ilegítimo, que depois converteu-se em ditadura e o obrigou a fugir deste nosso continente de pouca história e muitos espaços, rumo a outro, de vastas histórias e ínfimos espaços. Nas terras de França, ganhou uma lei que lhe permitia projetar.

Há arquitetos que morrem de artrite. Há arquitetos que derramam molho de pimenta num bife e morrem de indigestão. Os estudos históricos não registram a triste sina dos inúmeros arquitetos talentosos e azaradíssimos que morrem de caxumba, com três anos de idade, sem conhecer o próprio dom. A sorte, porém, imunizou o Arquiteto. Completou um século de vida, ostentando mais obras do que qualquer outro arquiteto, vivo ou morto. E ainda sobreviveu aos seus críticos mais minuciosos. Sobreviveu ao quase esquecido Herr Maxgroßeprofessorfuncionalismus, que desprezou sua casa por não compor uma série. Sobreviveu, por alguns dias, ao esquecido Grande Concretador-dos-Textos-Ilegíveis, que o criticava porque o criticava. Sobreviveu ao milionário Sergii Illustrateur, que o atacava por não cumprir obscuras pautas políticas. Sobreviveu a Pierrepaul Petitépatant, a Marcius Virága Kisaazony, a Hiram Bamboost, a Athanatos Karamelopoulos, a Ali Baba Backsheesh Rahat.

Adorou tradições universais em silêncio. Transmitiu proezas aéreas. Pastoreou passeios arquitetônicos, hierarquias urbanas, piani nobili. A terra seguirá girando sobre seu eixo. A vida é um sopro.

Escritório de Arquitetura Thobias® é uma criação de Irã Taborda Dudeque, arquiteto, historiador e professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Suas ficções arquitetônicas começaram em 1998, como um fanzine distribuído na pós-graduação da FAUUSP.

Fonte: http://www.revistaau.com.br/arquitetura-urbanismo/226/fabula-de-um-arquiteto-276025-1.asp

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