Arquitetura e cidade são conceitos que devem, necessariamente, ser pensados conjunta e integradamente. Ao longo da história e em todas as culturas, a arquitetura configurou a cidade como manifestação física dos homens habitando em sociedade. Os espaços urbanos transcendentes, espontâneos ou planejados, foram sempre configurados pela arquitetura subordinada à estrutura maior da cidade. A visão da dimensão urbana deste fenômeno resulta essencial para a definição e a transcendência da própria arquitetura.
A cultura da modernidade, no início do Século XX, provocou uma ruptura na relação entre arquitetura e cidade com a substituição do conceito de espaço urbano pelo de objeto isolado. O edifício-objeto abstrato tornou-se modelo de urbanização alternativo à cidade constituída por um sistema hierarquizado de espaços que possibilitam a vida social. A crítica desse modelo, na segunda metade do Século XX, revalorizou as estruturas históricas de configuração urbana. Porém, no caso das cidades brasileiras, as leis que regulam até hoje o desenvolvimento urbano continuam atreladas ao conceito de edifício-objeto, com normas de edificação abstratas baseadas em indicadores que pouco tem a ver com a realidade efetiva de construção do espaço urbano. Entre a legalidade abstrata e burocrática e a especulação imobiliária, as cida des brasileiras deixam de ser, a cada dia, efetivas cidades. O espaço histórico de convivência social transforma-se em estruturas fragmentadas, segregadas e excludentes, atreladas a leis de uso e ocupação do solo que pouco tem a ver com a realidade existencial do fato de habitar em comunidade e com a construção efetiva de uma paisagem urbana que possibilite uma vivência social estimulante e civilizada. As cidades brasileiras perderam o senso de urbanidade e isso resulta evidente na violência e marginalidade que oferece um sistema excludente materializado por arquiteturas que pouco contribuem para a celebração da vida social e para a apropriação efetiva dos espaços públicos.
Não se faz cidade com legislação burocrática e especulação imobiliária. A tecnocracia do urbanismo convencional é um instrumento necessário, mas extremamente insuficiente para atender à complexidade de solicitações da sociedade contemporânea. A visão de cidade conformada por "objetos arquitetônicos" precisa ser substituída pelo conceito de "espaços urbanos" hierarquizados e qualificados pela vivência das pessoas.
Se faz cidade desde a atuação pública com sistemas de leis sensíveis aos diferentes requerimentos de uso e apropriação dos espaços pelos cidadãos, com visão de edifícios articulados que configuram espaços urbanos - e não objetos abstratos isolados em uma estrutura fragmentada -, com políticas urbanas em favor das pessoas e não dos automóveis, com cuidado e valorização dos espaços públicos e seus equipamentos, com sensibilidade social e efetivas ações de integração urbana e inclusão dos setores menos favorecidos, com planejamento de longo prazo e um projeto de cidade racional e qualificada, respeitosa do patrimônio cultural e do ambiente natural, integrada como o território e articulada com outros centros urbanos de áreas ou regiões metropolitanas.
Se faz cidade desde a atividade profissional com conhecimento e capacitação continuada acerca do rol da arquitetura na estrutura da cidade, com sensibilidade social e conceitos de inclusão e integração, com visão de espaço urbano e não de edifício-objeto, com planejamento e paisagismo inclusivos e motivadores da celebração dos espaços públicos. Fazer cidade é o grande desafio da arquitetura brasileira na direção de uma sociedade com níveis mínimos de urbanidade e civilidade.
Roberto Ghione é arquiteto e Diretor do IAB/PE
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