Dois conceitos permeiam a consciência política e social acerca da
produção da moradia brasileira. Um a considera um produto, objeto de
consumo que se comercializa dentro das leis de oferta e procura do
mercado imobiliário. O outro a considera um processo de promoção social e
de integração urbana da população menos favorecida.
A
concepção da casa como produto ou como processo é o reflexo de
ideologias divergentes, cuja manifestação materializa-se na estrutura
urbana da cidade e confronta comportamentos sociais diferentes, as vezes
antagônicos.
A
transferência da modalidade de produção de um grupo social para outro
evidencia conflitos de adaptação e apropriação do produto oferecido,
disfarça os alcances e objetivos dos programas sociais e favorece os
atores intermediários do processo em detrimento dos destinatários
finais. Produzir a habitação de interesse social dentro das leis do
mercado imobiliário, para grupos de baixo poder de compra, ou que atenda
aos interesses das construtoras intermediadoras, resulta em produtos
desqualificados como casas e inviáveis como cidades.
Quando a ideologia de implementação dos programas favorece o produto em
detrimento do processo se produzem conflitos de exclusão social e urbana
provocados pela subordinação dos mesmos à relação custo-benefício, que
desvaloriza a produção da própria casa em localizações periféricas e
carentes de serviços urbanos, hoje evidente em inúmeros conjuntos
construídos para o programa Minha Casa Minha Vida. Resulta contraditório
gastar grandes quantidades de recursos públicos em produtos
questionáveis (apesar da boa intenção de resolver o problema da moradia
popular brasileira), assim como perder uma oportunidade impar de
desenvolvimento social e integração urbana. A evidente falta de
planejamento e alinhamento do programa com as necessidades de
desenvolvimento das cidades, o predomínio da quantidade acima da
qualidade e o encobrimento de um objetivo social para beneficiar o
crescimento econômico e o lucro dos produtores, não faz outra coisa se
não complicar os resultados sociais e urbanísticos desejáveis.
O
próprio nome do programa revela a ideologia que favorece o consumo do
produto e não o processo: Minha Casa é o objeto, Minha Vida é o sonho. A
repetição do possessivo singular de primeira pessoa, "minha", marca a
necessidade de possuir e o estímulo consumista. Muito bom para quem
produz; não tanto para quem tem que morar em conjuntos habitacionais
carentes de condições adequadas de urbanidade e de integração efetiva
com a cidade existente. Subordinar as soluções de arquitetura e
urbanismo às condicionantes tecnocráticas de uma instituição de
financiamento representa uma situação inadmissível, que pouco tem a ver
com o fato de fazer cidade e de construir habitações qualificadas. A
ausência de créditos para usos complementares, como comercial, de
escritórios e outros, conduz à produção exclusiva de
habitações sem favorecer uma consolidação urbana efetiva.
Estimular o processo em substituição do produto implica considerar os
mecanismos de construção da cidade, a integração de novos habitantes em
bairros consolidados, as relações e vínculos preexistentes, a oferta de
serviços, a garantia de mobilidade e acessibilidade, as relações de
continuidade física e funcional, a configuração e qualificação da
paisagem urbana, os modos de vivenciar as casas, edifícios e espaços de
convivência, as adequações às condições culturais, climáticas,
ambientais e topográficas, dentre outras situações, preocupações que a
implantação de unidades padronizadas desconsideram em função da
produtividade, quantidade, tempo político, lucro empresarial e
ignorância acerca dos procedimentos urbanísticos e sociais implicados,
assim como uma certa arrogância e preconceito
acerca de como os "pobres" devem se comportar e viver na cidade. Os
resultados exacerbam as diferenças e conflitos sociais e denigram a
própria cidade, que é patrimônio de todos.
Em relação à produção de arquitetura, a consideração do processo implica
estimular a pesquisa tecnológica para a obtenção de sistemas de
produção alternativos às ofertas convencionais do mercado, considerar
tipos arquitetônicos e soluções adaptadas aos modos de vida e condições
climáticas, topográficas e urbanísticas em substituição do "projeto
padrão", assim como de todas aquelas manifestações que possibilitam a
originalidade e criatividade inerentes à profissão dos bons arquitetos e
urbanistas.
Em relação aos processos sociais, a participação, o consenso e a
democracia são procedimentos a serem estimulados em oposição à imposição
de soluções "fechadas", burocráticas e padronizadas. Para famílias de
carência extrema, os sistemas de autoconstrução e ajuda mútua permitem
inserir as pessoas beneficiadas no mercado de trabalho através do
aprendizado do ofício de construir, ao mesmo tempo que marcam o acesso a
casa própria como uma conquista social.
Conceber o produto "casa" como meio de desenvolvimento social e urbano
resultará em produtos arquitetônicos e urbanísticos com a qualificação
ausente em muitas experiências recentes. Conciliar o anseio pessoal da
"minha casa" com o sentimento solidário e participativo em relação a
"nossa cidade" constitui um desafio que, com certeza, promoverá
sociedades melhores em cidades mais justas, dignas e integradas.
Roberto Ghione é arquiteto
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