A Solidão dos Edifícios (Parte 2) / Rafael Moneo

Moneo_01 © flickr jmtp

 

Arquitetura sempre apresentou uma inerente arbitrariedade como algo discreto. Em outras palavras, a arbitrariedade da forma desaparecia na construção, e a arquitetura atuava como ponte entre as duas. Hoje, a arbitrariedade da forma é evidente nos próprios edifícios, porque a construção é destituída do jogo projetual. Quando a arbitrariedade é tão claramente visível nos edifícios mesmos, a arquitetura está morta; o que eu entendo como o atributo mais valioso da arquitetura desaparece.

O preço de tal atitude é pago pela arquitetura, visto que muito frequentemente alguns arquitetos nos apresentam com uma imagem de fragilidade e com um gosto pelo ficcional. Essa é a consequência natural do imediatismo. Curiosamente, isso não acontecia com a arquitetura do Movimento Moderno, na qual a ideia de imediatismo não poderia ser aplicada. Quer estejamos considerando a técnica quer os objetivos sociais, os arquitetos do Movimento Moderno respeitavam tanto a técnica quanto o programa do edifício. Embora sua arquitetura talvez não tenha sido bem sucedida em solucionar os problemas impostos simultaneamente, eles se empenharam em envolver tais preocupações em suas obras, e, consequentemente, sua arquitetura não pode ser caracterizada por seu imediatismo. Logo, a ideia de arquitetura sempre implicou uma consciência do mundo exterior mais além do poder das imagens. Mas, hoje em dia, a falta de contato com o mundo exterior trás consigo a fantasia de uma arquitetura autônoma, controlada exclusivamente pela prancheta.

Poderia ser argumentado que no futuro a arquitetura irá carecer da condição de quase perpetuidade que ela detinha no passado e irá desde agora ser caracterizada como efêmera. Isso explicaria a condição rarefeita dos nossos edifícios, apesar de suas pedras. A arquitetura é influenciada atualmente por essa condição efêmera e, logo, se apresenta como efêmera, independentemente do seu material. E isso nos impõe uma questão maior: Já não é a arquitetura atual capaz de perdurar como era no passado? Existe na arquitetura atual uma sensação de que as obras são perecíveis? Acredito que essas perguntas devem ser respondidas afirmativamente, e somente assim seremos capazes de contrapor tal tendência, reconhecendo o gratificante modo no qual os edifícios aceitavam sua própria vida no passado. A construção de um edifício incorpora uma enorme carga de esforços e um grande investimento. A arquitetura, em princípio, quase por princípios econômicos, deveria ser durável. Os materiais deveriam proporcionar longa vida aos edifícios. Um edifício, antigamente, era construído para durar para sempre ou, pelo menos, nós certamente não esperaríamos que ele desaparecesse. Mas, hoje em dia, as coisas mudaram. Embora resistamos em manter nossa arquitetura dessa forma, ela está muito afastada da arquitetura tradicional, apesar do nosso declarado respeito pela história. Nós provavelmente sabemos inconscientemente que a arquitetura já não irá durar tanto quanto costumava. Mas rejeitamos tais ideias, ainda que as situações reais afetem a arquitetura e a marquem com o sabor do efêmero. Se a arquitetura é efêmera, ela pode ser imediata.

Se a arquitetura uma vez contribuiu para a realidade da ficção, a partir daqui eu irei contribuir com a ficção da ficção. O orgulho da arquitetura era fazer real a ficção, porque a maneira como a arquitetura era produzida implicava uma continuidade entre forma, como invenção mental, e forma construída, de tal maneira que a última se tornava a única realidade existente. O mundo ideal era transformado num mundo real, porque o que caracterizava a arquitetura era o fato que ela deveria ser construída. Era um produto mental que tomava sua consistência do ato de expressão isolado, tornando-se, ao mesmo tempo, uma realidade independente. A arquitetura de hoje tem perdido contato com seus suportes genuínos, e o imediatismo é a natural consequência dessa mudança crítica sofrida pelo papel da arquitetura no mundo. Eu ainda acredito numa arquitetura da realidade, porém eu deveria reconhecer a grande amplidão para a qual minha convicção é a manifestação de um desejo maior do que eu posso prever sensatamente para o futuro.

Eu não acho que este seja o momento adequado para discutir tais importantes preocupações, mas, em minha opinião, essas discussões deveriam ter lugar na escola, e eu gostaria de seguir esses problemas com estudantes interessados. Contudo, eu gostaria de responder a algumas questões que eu introduzi. Os arquitetos deveriam perceber que a arquitetura, o trabalho no qual eles estão envolvidos, suas obras, é uma complexa realidade que inclui muitas presenças; por essa razão, o imediatismo-fantasia não é possível. Todas essas presenças são refletidas no múltiplo espelho que é o edifício. Eles deveriam estar conscientes na operação de projeto, de modo a evitar a redução que sempre distorce a realidade arquitetônica. O fato que os arquitetos podem tornar-se cientes das várias maneiras nas quais seu trabalho é limitado, que ele apresenta limites reais, desde a ideologia ao tijolo, não impede a arquitetura de ser possibilitada. A habilidade de acomodar as múltiplas presenças inerentes ao edifício deveria ser a chave com a qual o arquiteto condense disparidade na singular presença autoportante dos edifícios.

Em tanto que eu considero desenhos e modelos o suporte necessário e natural para nossas discussões sobre arquitetura na escola, eu encorajo os estudantes a entender o imenso prazer que a atual produção de arquitetura, a construção de edifícios, oferece. Isso significa que eu gostaria de acompanhar os estudantes em sua iniciação como arquitetos, de estar ao lado deles quando se tornarem criadores de edifícios. Nós estamos vivendo num mundo discontínuo –em tempos de incertezas, como o Professor Cobb gosta de dizer–, e os arquitetos, negligentes aos seus desejos e intenções, sofrem ao estar desprotegidos ante a diversidade da sociedade na qual eles trabalham. Portanto, uma vez que o arquiteto tenha adquirido suas habilidades, o treinamento dos seus olhos, o primeiro imperativo é ganhar o conhecimento crítico que irá permitir a escolha das coordenadas dentro das quais sua carreira irá desenvolver-se; essas são as coordenadas para as quais seus edifícios irão referir-se.

Uma iniciação arquitetônica inclui atualmente, em minha opinião, uma forte familiaridade com a história –uma história que já não é um depósito de formas ou um atelier de estilos, mas uma que simplesmente oferece o material para se pensar a evolução da arquitetura, assim como a maneira com a qual os arquitetos trabalhavam no passado.

Agora, por que eu insisto tanto na convicção que edifícios não são nem o resultado de um processo nem a materialização de um desenho? Em outras palavras, por que eu insisto na ideia que edifícios não são propriedades exclusivas do arquiteto? Principalmente porque eu acredito que a presença do arquiteto rapidamente desaparece e que, uma vez completados, os edifícios tomam vida própria. Os arquitetos suportam todas as dificuldades envolvidas em erguer um edifício –artefatos que, quiçá a princípio, podem parecer refletir nossas intenções, expressar nossos desejos e representar os problemas que discutimos na escola. Por um tempo, consideramos nossos edifícios como espelhos; na sua reflexão reconhecemos quem somos, e eventualmente quem fomos. Somos tentados a pensar que um edifício é uma declaração pessoal dentro do contínuo processo da história; mas hoje eu tenho certeza que uma vez que a construção é finalizada, uma vez que o edifício assume sua própria realidade e seu próprio papel, todas aquelas preocupações que ocupavam o arquiteto e seus esforços se dissolvem. Chega um momento em que os edifícios não precisam de nenhum tipo de proteção, nem dos arquitetos nem das circunstâncias. Finalmente, circunstâncias permanecem apenas como alusões, permitindo aos críticos e historiadores ganhar conhecimento sobre os edifícios e explicar aos outros como eles tomaram forma.

O edifício mesmo descansa solitário, em completa solidão –sem mais declarações polêmicas, sem mais problemas. Ele adquiriu sua definitiva condição e permanecerá só para sempre, mestre de si mesmo. Eu gosto de ver o edifício assumir sua condição própria, vivendo sua própria vida. Portanto, eu não acredito que arquitetura é somente a superestrutura que introduzimos quando falamos sobre edifícios. Prefiro pensar que arquitetura é o ar que respiramos quando os edifícios tenham alcançado sua radical solidão.

Estão todas essas considerações presentes no nosso trabalho? Eu gostaria que estivessem. Porque quando os arquitetos percebem que um edifício controla sua própria vida, sua aproximação ao projeto é diferente; muda radicalmente. Nossas preocupações pessoais tornam-se secundárias e a realidade final do edifício torna-se o autêntico objetivo do nosso trabalho. É a materialidade do edifício, seu próprio ser, que se torna a única e exclusiva preocupação. Essa atitude nos permite estabelecer a distância necessária entre o edifício e nós mesmos.

De todas as artes figurativas e plásticas, a arquitetura é provavelmente aquela na qual a distância entre o artista e seu trabalho é a maior. Um pintor ou um escultor pode deixar sua marca direta na tela ou na pedra; ele é inextricavelmente atado à sua obra. Isso não acontece na arquitetura. Na nossa disciplina, uma distância natural nos separa da nossa obra; essa distância deveria sempre ser mantida, especialmente quando nossos pensamentos começam a ser materializados em projeto. Manter essa distância é reconhecer a realidade arquitetônica, mas é também a precondição para iniciar um projeto. Arquitetura implica a distância entre nosso trabalho e nós mesmos, com isso, ao final, a obra permanece sozinha, autoportante, uma vez que ela tenha adquirido sua física consistência. Nosso prazer reside na experiência dessa distância, quando vemos nosso pensamento suportado por uma realidade que já não nos pertence. O que é mais, uma obra de arquitetura, se bem sucedida, pode ocultar o arquiteto.

Referência: Aula Magna, Kenzo Tange Visiting Professor Chair / Harvard University Graduate School of Design, 1985

Texto original em inglês / Tradução ao português: Igor Fracalossi

 

Fonte: Moneo , Rafael . "A Solidão dos Edifícios (Parte 2) / Rafael Moneo" 23 Feb 2012. ArchDaily. Accessed 26 Feb 2012. http://www.archdaily.com.br/33413/a-solidao-dos-edificios-parte-2-rafael-moneo/

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