A vida e obra de Toyo Ito, por Luiz Florence

Em suas arquiteturas de espaços líquidos, Toyo Ito constrói argumentos críticos aos caminhos da arquitetura moderna da geração japonesa pós-guerra

Por Luiz Florence
Edição 232 - Julho/2013

Toyo Ito - 1941


O mais recente Pritzker tem aparência jovem, poucos cabelos brancos e um jeito despojado na atitude pessoal e na prática profissional - o que faz passarem despercebidos seus 72 anos. Com uma carreira prolífica e volumosa dentro e fora de seu país, Toyo Ito faz parte de uma geração de japoneses que cresceu sob o efeito das transformações sociais e culturais após a Segunda Guerra Mundial. Mas pode ser considerado (mesmo com mais de 30 anos de carreira dentro do século 20) um dos pioneiros da primeira geração de arquitetos japoneses, que produziu uma arquitetura alinhada com os fenômenos culturais do século 21.
Durante a década de 1970, muitos dos sonhos da arquitetura moderna se tornavam realidade no Japão. Mas o alinhamento da primeira geração de arquitetos modernos com os meios de produção e com o establishment cultural era criticado pelas gerações mais jovens, principalmente pelo engajamento com o mercado e com a sociedade de consumo de massa. Para encontrar caminhos críticos à narrativa prévia, o jovem Toyo Ito entra em contato com a obra do metabolista Kiyonori Kikutake (1928/2011) - com quem trabalhou antes de fundar seu escritório próprio -, com a obra de Kazuo Shinohara (1925/2006) e de Arata Isozaki (1930), que mantinham um argumento crítico em relação aos caminhos da arquitetura moderna.
Os primeiros trabalhos de Toyo Ito, materializações teóricas de seus primeiros rompantes críticos, foram chamados por muitos - inclusive por ele - de arquitetura efêmera. O termo, em seu significado usual, oferece um entendimento equivocado sobre obras como o PAO (Alojamento para a Mulher Nômade de Tóquio, de 1985), e a Torre dos Ventos, em Yokohama (1986): mais do que oferecer elementos móveis, desmontáveis ou tecnicamente passíveis de movimentação, a arquitetura de Toyo Ito, singela, sem limites definidos por espessas paredes e aparentemente frágil, oferecia um contraponto à monumentalidade moderna anterior, presente na obra brutalista japonesa e nas imagens da metrópole infinita, objeto das narrativas do arquiteto.
A efemeridade também está na criação da arquitetura como arcabouço da experiência humana, encerrada no espaço e também no tempo, e impossível de se reproduzir fielmente a cada evento. A Torre dos Ventos de Yokohama (1986) é o primeiro de seus projetos amplamente amparados na manipulação de luz no decorrer do tempo. Dotada de duas camadas, sendo a interna opaca, de concreto, e a externa de chapa metálica perfurada, a torre durante o dia é um elemento inerte da paisagem, mas de noite torna-se uma entidade etérea, um feixe de luz representando o próprio ar que comporta, dotada de limites difusos graças à manipulação de pontos de luz entre as duas camadas de vedação.
1976
Residência White U, Tóquio, Japão

1984
Casa Silver Hut, em Tóquio, Japão

1986
Torre dos ventos, em Yokohama, Japão


Koji Taki / Tomio Ohashi / divulgação Toyo Ito

De maneira mais complexa e elaborada, Toyo Ito volta a manipular a luz, desta vez entre as lajes, pelas árvores estruturais da Midiateca de Sendai (1995/2000). O primeiro dos grandes projetos para instituições públicas, a Midiateca é onde Toyo Ito demonstra com mais liberdade a proposta de explorar novos caminhos para a experiência humana em ambientes fechados. A edificação sofreu com as catástrofes naturais que varreram o país em março de 2011. As fachadas de vidro, que serviam para a difusão das luzes multicoloridas, foram estraçalhadas com a força dos abalos sísmicos. Curiosamente, o acaso permitiu a exposição da forma limpa da Midiateca, e acentuou o caráter de espaço líquido e a distorção da malha ortogonal que o arquiteto investiga.
Marcante por sua crítica ao taylorismo enraizado na organização modernista do programa de atividades, a proposta de Toyo Ito é a de enfrentar as atividades humanas um mundo pós-funcionalista. Para ele, a relação entre o mundo computadorizado, cada vez mais virtual em sua apreensão, e o corpo humano é a fonte das experiências espaciais, profundamente afetadas pelos novos recursos tecnológicos. Não é à toa que o primeiro nome de seu escritório, Urbot (Urban Robot), indica a robotização do homem e de sua vivência. É pelo resgate da riqueza da experiência humana, e pelo entendimento do que é vivermos em um meio em que imagem virtual e real se entremeiam, que a obra de Toyo Ito opera.
Não se trata, porém, apenas de arquitetos. A geração de Toyo Ito questiona a sociedade japonesa da era da Guerra Fria, do choque de norte-americanismo e tradicionalismo. Oito anos mais novo, o escritor Haruki Murakami (1949), por exemplo, oferece-nos um paralelo interessante no campo da literatura: a crítica ao enrijecimento da estrutura social japonesa, especialmente no período da Segunda Guerra Mundial, apresenta a mentalidade do intelectual japonês da virada do século. Cada vez mais ocidentalizado e ao mesmo tempo interessado na revisão dos valores historicamente presentes em seu país, com a revisão crítica dos anos de fascismo e imperialismo, da política expansionista e do espírito beligerante, e com o reencontro do homem com a natureza - a este último, aliás, Toyo Ito recorre como principal metáfora de projeto.
O questionamento dos valores culturais do Japão moderno não pode ser confundido, contudo, com a negação absoluta dos valores ocidentais introduzidos na primeira metade do século 20. Em 1995, Ito admite a possibilidade de referências ao convento de La Tourette, de Le Corbusier, em relação à manipulação da luz pela forma das cascas brancas, bem como o seu contato com a metodologia de análise da forma de Colin Rowe. De fato, a produção de Toyo Ito intensifica a ocidentalização da arquitetura japonesa, já iniciada pela geração de Isozaki e Kenzo Tange. Podemos observar o jogo de formas aplicado no plano horizontal na planta baixa no Hotel Poluinya (Hokkaido, 1991/1992), e no plano vertical, como na fachada do conjunto habitacional no Canal Shinonome, divisão 2 (1999/2003). O conjunto habitacional, em especial, foi referência para sua antiga arquiteta, Kazuyo Sejima, hoje sócia do Sanaa, no projeto do conjunto habitacional no distrito de Gifu. Se observarmos a maneira como Ito conquista uma maior liberdade formal em seus últimos projetos, principalmente nos internacionais, podemos ver nos primeiros ensaios, ainda que tímidos, o embrião de uma nova abstração do autor.

1985
PAO - Alojamento para a Mulher Nômade de Tóquio, Japão

1995/2000
Midiateca de Sendai, Japão


Tomio Ohashi / divulgação Toyo Ito

A crise econômica no Japão, que teve seu início no final da década de 1990 e se intensificou durante os anos 2000, significou a internacionalização da carreira de Toyo Ito. Depois de Sendai, que foi o primeiro projeto de grande porte assinado por seu escritório, sua produção passa por momentos de experimentação formal e espacial, tanto no Japão quanto fora. Na biblioteca da Universidade de Arte de Tama (2004/2007), o arquiteto manipula a grelha ortogonal, tencionando-a da mesma maneira como em Paris, para o concurso do Forum Les Halles (2007), no qual implanta uma série de estruturas que lembram velas ao vento, ou grandes lençóis brancos em movimento.
Toyo Ito participa de concursos internacionais, dos quais suas primeiras obras construídas no exterior foram resultado. Taiwan torna-se um dos países com maior concentração de metros quadrados construídos por Toyo Ito, com o Estádio Central de Kaohsiung (2005/2009) e a Ópera Metropolitana, cujo concurso vence em 2005 e cujas obras estão em andamento hoje. O estádio, em especial, representa um novo patamar de possibilidades para o arquiteto: a estrutura é composta por uma curva metálica, formando apoio para a arquibancada, desenho para a cobertura e fixação para as placas fotovoltaicas (as quais seguem uma grelha diferente dos pórticos metálicos). Talvez as placas, cujo posicionamento provavelmente não é o mais eficiente para captação de luz, não sejam um exemplo de produção de energia renovável, mas de fato formam uma das mais belas manipulações de um equipamento que normalmente se constitui como um trambolho nos projetos de cobertura. Ao mesmo tempo aberta, porém com seus limites definidos, a serpente que forma o estádio convida o observador a entrar no conjunto.
Questionamentos dos limites dos ambientes internos tornam-se cada vez mais presentes na obra do arquiteto. Repensando a questão das atividades humanas nos espaços para além do funcionalismo, exaltando a luz e a fluidez do espaço, Toyo Ito, em vez de se abrir para o externo e para a cidade, tenta trazê- la para dentro, com metáforas do ambiente urbano ou de suas próprias abstrações deslocadas de seu contexto original. Vemos esse jogo de forças na residência White-U, onde a questão da fluidez interna está presente mas em detrimento à comunicação com o exterior, existe uma força centrípeta que o leva para dentro, para o jardim. Sabe-se que o jardim está no centro da casa, mas não se pode vê-lo pelo lado de dentro. Esse jogo de forças centrípetas é uma das constantes da obra de Toyo Ito. Podemos observá-lo em um de seus mais recentes projetos, o Museu Ken Iwata para a Mãe e Filho (2009/2010), em Imabari, Japão, no qual a casca branca é substituída pelo vidro, permitindo ao observador apreciar as obras do jardim sem sair da proteção do abrigo. Na tipologia residencial, temos como exemplo do amadurecimento desse conceito centrípeto a residência no Chile, White-O (2005/2009) (AU 190). Avançando a partir da experiência sensorial da White U, onde temos começo e fim para o deslocamento do habitante, a casa do Chile proporciona um ciclo infinito para o espectador. Além disso, a eliminação do elemento opaco, como em Imabari, sugere uma confiança maior do arquiteto em experimentar a transparência sem perder a tensão externo-interno.

2005
Ópera Metropolitana de Taichung, projeto ainda em construção em Taiwan a pedido do governo da cidade de Taichung/República da China

Tomio Ohashi / divulgação Toyo Ito

A delimitação entre interno e externo é algo que Toyo Ito mantém como uma constante. A noção de abrigo e de fronteira permanece. As membranas que separam o ambiente externo do interno, delimitando o volume, se mantêm, mesmo que liquefeitas, e se sobrepõem à transparência, como podemos observar na Silver Hut, na PAO e na Biblioteca da Universidade de Tama. A simbologia da proteção onde vedação e teto se confundem está presente como simbologia dessa tensão superficial do espaço interno, há uma constante alusão à caverna como metáfora de abrigo, e sua relação direta com a experiência humana. As referências às quais Ito constantemente retorna - a caverna, metáfora do ambiente isolado, e a floresta, metáfora da cidade como combinação complexa de múltiplos ambientes e níveis de interação - são sintomas da sua proposta orgânica, e talvez bucólica, para uma sociedade digitalizada.
A arquitetura moderna é primordialmente abstrata e, dessa maneira, isolada do entorno e da cidade pela própria fidelidade ao seu conceito. Essa sina é vista nas obras de Mies van der Rohe com clareza, mas não se reserva somente aos modernos. Para Toyo Ito, é algo com o qual a arquitetura deve aprender a lidar. Essa tensão superficial, tal qual a da água, é um elemento com o qual o arquiteto se relaciona em projetos como o Fórum para a Música, Dança e Cultura Visual, em Ghent, Bélgica (2003/2004), e com mais clareza no projeto da Ópera Metropolitana de Taichung (em construção), de maneira mais refinada.
Crítico do hermetismo das formas puras, Toyo Ito é parte de uma geração pós-metabolistas, cuja produção mais intensa se deu nos anos de 1960 e 1970. A partir desse legado, Toyo Ito, bem como Sejima, Zaha Hadid e Peter Eisenman, entende que o engajamento entre forma e geometria se intensificou e se problematizou. A física e a mecânica, como ciências duras, deram lugar à biologia, como espelhamento teórico. O questionamento mais nítido se dá na dissolução de limites entre piso, teto e parede. O piso, em especial, tem o desafio de se equilibrar entre o êxito na exploração do conceito de paisagem urbana, composta de vários níveis, e a possibilidade de ocupar o espaço com programa. Para o arquiteto, programas dispostos em um só nível permitem essa manipulação do plano com maior facilidade. Em projetos em que há a necessidade de ter diversos planos, como em Sendai e na Ópera de Taichung, o arquiteto suaviza a contradição entre plano e curva pela separação entre laje (esbelta) e parede (maciça).

2004/2007
Biblioteca da Universidade de Arte de Tama, em Tóquio, Japão

2005/2009
Estádio Central de Kaohsiung, em Taiwan


Tomio Ohashi / Fu Tsu

Esse desejo de romper com o piso plano está anunciado na exposição itinerante The new 'real' in architecture & Toyo Ito: generative order (2006/2008), que lembra a topografia do pavilhão de Osaka, de Paulo Mendes da Rocha, e se faz claro na Ópera de Taichung.
Espera-se que Taichung leve a proposta de Toyo Ito a patamares de clareza e ousadia plástica que acompanham sua pesquisa pela fluidez do espaço e ensaiada como via de mão única na White U e multiplicada nas lajes entrecortadas por árvores cônicas metálicas da Midiateca de Sendai. Taichung oferece um cruzamento quase infinito de possibilidades de fluidez de espaço e forma, amparadas pela noção de laje retrabalhada como casca. De fato, esse tipo de ousadia é difícil de se apreciar em obra construída hoje - e na história da arquitetura moderna -, e ensaia para uma das obras mais maduras e, ao mesmo tempo, para uma das investigações mais profundas sobre a nova abstração. Para gerar uma nova complexidade, o arquiteto focou em uma ordem orgânica, como a das plantas, na qual regras simples são aplicadas para gerar complexidade. Tudo leva a crer que é assim que Toyo Ito enxerga a sociedade atual, e como o ser humano expõe seu corpo e sentido aos novos fenômenos.

LUIZ FLORENCE é arquiteto formado pela FAUUSP em 2004 e mestrando pela mesma instituição. Em 2006 fundou junto com colegas de faculdade o coletivo de arquitetura 23 Sul (www.23sul.com.br)

Fonte:
http://au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/232/artigo292061-1.aspx

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