Para o português Eduardo Souto de Moura, o medo come a alma. Por Laura Sobral

Com mais de 60 obras construídas, Eduardo Souto de Moura conquistou cedo o reconhecimento por seu trabalho. Sua busca por respostas a problemas concretos e reais é incansável, atitude que pode ser resumida no nome de um dos filmes do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder, que Souto de Moura aprecia: O medo come a alma.

Por Laura Sobral

Edição 206 - Maio/2011

 

 

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Era 25 de julho de 1952, na cidade do Porto, Portugal. Nascia o segundo arquiteto desse país a ser reconhecido com o Prêmio Pritzker de arquitetura: Eduardo Souto de Moura, um dos representantes da Escola de Arquitetura do Porto.

Ainda estudante, Souto de Moura trabalhou no escritório de Alvaro Siza - primeiro português a ter recebido o Pritzker - de quem se tornou amigo, parceiro e vizinho: os dois moram no mesmo edifício, projetado por Souto de Moura na cidade do Porto. Formou-se em 1980 pela Escola Superior de Belas-Artes do Porto (ESBP) e, com Fernandes de Sá, seu professor de urbanismo na Belas Artes, iniciou seu primeiro projeto: o Mercado Municipal de Braga, concluído em 1984.

Recém-formado, já se destacava entre os profissionais de sua geração. Em 1981, venceu o concurso para o Centro Cultural da Secretaria de Estado da Cultura no Porto, a Casa das Artes (1981/1991), que o lançou como um dos mais importantes arquitetos da nova geração em Portugal e na Europa.

Sua carreira como docente também começou cedo: de 1981 a 1990 foi assistente na ESBP e, posteriormente, na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, professor convidado na Faculdade de Arquitetura de Paris-Belleville (1988), nas Escolas de Arquitetura de Harvard e Dublin (1989), na Escola de ETH, de Zurique (1990/1991), e na Escola de Arquitetura de Lausanne (1994).

O primeiro lugar em concursos começou um ano depois de formado e se estendeu por sua carreira: venceu os concursos para o Centro Cultural Casa das Artes, da Secretaria de Estado da Cultura no Porto (1981), para a reestruturação da Praça Giraldo em Évora (1982) e para um hotel na zona histórica de Salzburgo, na Áustria (1987).

Quando o mundo só falava do pós-modernismo, Souto de Moura optou por conectar-se à arquitetura moderna no seu sentido mais puro, e acrescentar a isso a essência de sua arquitetura tradicional. Assim, criou um traço sólido, que se mistura à paisagem e ao terreno. Sua formação coincide com um momento de transição na sociedade portuguesa, uma época de grandes transformações associadas à crise política e social.

Portugal, até a revolução de 1974, era um país marcado por um regime ditatorial, que rejeitava as influências do exterior, nomeadamente no campo de arquitetura, para o qual eram impostas normas restritas e modelos arquitetônicos próprios de um regime autoritário. Quando começou a trabalhar, Souto de Moura convenceu-se de que, para ser arquiteto no 25 de abril - data da Revolução dos Cravos -, "era necessário, antes de tudo, construir um país, mal ou bem, e era preciso encontrar os meios para isso". Percebeu então que o movimento moderno em Portugal nunca tinha existido - sendo assim, o pós-modernismo era pouco consistente e desligado da situação portuguesa.

A obra do arquiteto é profundamente marcada por duas vertentes arquitetônicas. Primeiro, pela Escola do Porto e pelos mestres Fernando Távora e Alvaro Siza, que desenvolveram uma arquitetura baseada na reinterpretação da lógica construtiva da arquitetura popular e na contextualização da obra num local concreto. Por outro lado, pela influência de Mies van der Rohe, seu neoplasticismo, fragmentação dos planos e os jogos de sobreposições de diversos materiais e cores.

Muitas vezes, inclusive, é citado como seguidor de Mies van der Rohe, pela horizontalidade das linhas condutoras e pela simplicidade, que podem ser notadas nas suas residências, seu grande espólio de obras. Mas foi um seguidor inquieto, investigativo e renovador, e reconhecido também pelo uso hábil dos materiais, como madeira, pedras, tijolo, aço, concreto e o uso surpreendente da cor. A linguagem arquitetônica de Mies van de Rohe, sintetizada na célebre expressão Less is more, reflete-se na simplicidade e origina a busca incessante do aperfeiçoamento da técnica, tornando-a um dos elementos fundamentais da arquitetura minimalista. Um dos primeiros projetos publicados de Souto de Moura é uma casa em Moledo do Minho (1991/1998), em que apenas a cobertura se destaca, pairando sobre dois muros incrustados na montanha.

No Mercado Municipal de Braga, concluído em 1984, o arquiteto desenvolveu dois extensos muros paralelos e uma sucessão de 32 pilares cilíndricos, onde se assenta uma imponente cobertura plana. O edifício, construído em um local caracterizado por uma enorme desorganização urbanística, secciona o território e surpreende pelo desenho rigoroso e pela associação de materiais de características distintas, como, por exemplo, o bloco de pedra e o concreto pintado de branco.

O Mercado de Braga traduz a situação em Portugal e a ação arquitetônica de Souto de Moura em relação à busca da modernidade ainda não alcançada pela arquitetura portuguesa, na presença forte e mais tradicional dos muros de pedra e na abstração dos planos brancos, de concreto.

Naquela época, Souto de Moura era intensamente fora de moda, tendo desenvolvido seu caminho individual durante o auge do pós-modernismo. Assim, seguiram-se seus próximos trabalhos, nas primeiras obras da década de 1980, quando teve uma abordagem que não acompanhava as tendências mundiais do momento. Os edifícios do início da sua carreira podem parecer corriqueiros ao olhar atual, mas foram corajosos quando concebidos. Um exemplo é a Casa Dois em Nevolgilde, no Porto, concluída em 1988, com seus muros de pedra.

As regras organizativas e construtivas do Mercado de Braga aparecem também na Casa das Artes do Porto (1991), resultante de um exercício de reflexão, e de uma lógica compositiva que pretende definir o programa e a linguagem que mais se adapta ao local. Situada em um jardim de uma residência nobre da cidade do Porto, surge de forma camuflada. As características da fachada não permitem uma leitura imediata de um edifício, mas a de um muro de vedação.

A Casa das Artes é uma prova da habilidade de Souto de Moura com os materiais, que os usa de forma expressiva. Utiliza cobre, pedra, concreto e madeira com confiança, usando pedras de mil anos ou se inspirando em um detalhe moderno de Mies van der Rohe. É um exemplo de associação entre as técnicas tradicionais e as inovadoras, com contrastes de materiais, densidade e peso, e resultam em um conflito entre duas ordens de valores: o natural e o artificial.

O contraste entre muros de pedra e o vidro são um claro exemplo, e criam uma ilusão de maior continuidade dos planos, neutralizando ainda mais a presença do edifício. A parede de pedra, dimensionada relativamente à própria qualidade do material, constitui o significado autêntico do projeto e é a aceitação do equilíbrio entre os elementos que já existiram no local. A importância do lugar e a contextualização são permanentes e a localização é um pretexto que desencadeia múltiplas interpretações. Este projeto marca o início de sua carreira como arquiteto independente.

A arquitetura em pedra marca presença em outros projetos, como na Casa do Bom Jesus do Monte, em Braga (1994), pela qual recebeu o prêmio Pedra na Arquitetura de 1995. Em 2007, na mesma cidade, o arquiteto concluiu a obra da Casa do Bom Jesus II, destacada pelo júri do Pritzker pelo concreto das paredes exteriores. O local era uma colina íngreme com vista para a cidade de Braga. "Decidimos não produzir um grande volume de repouso de uma colina. Em vez disso, fizemos a construção em cinco terraços com muros de retenção, com uma função diferente definida para cada terraço - árvores frutíferas em um nível mais baixo, uma piscina no próximo, a seguir as partes principais da casa logo acima e, na parte superior, uma floresta", explica o arquiteto.

Gerou polêmica com os conservacionistas o projeto de Souto de Moura para converter o Convento de Santa Maria do Bouro em uma pousada, em 1997. A antiga estrutura da obra, em um terreno montanhoso, na região de Amares, Portugal, com paredes de mais de quatro metros de espessura, foi preservada. Porém, a parte que tinha desaparecido não foi reconstruída para imitar o original e, sim, repensada como projeto. Por isso, os que defendiam a intervenção mínima, a reposição dos elementos destruídos, e os monumentos como documentos históricos - o conservacionismo -, contrapunham-se aos que pensam na intervenção como sinônimo de (re)projetar, o que exige um questionamento crítico, acompanhado de um rigoroso conhecimento histórico do edifício. Este último foi o partido escolhido e bem realizado por Souto de Moura, com uma análise para descobrir as qualidades a preservar e, assim, definir a estratégia de intervenção, que resultou em espaços modernos na concepção e consistentes com sua história. O projeto da Pousada de Santa Maria do Bouro foi finalista do Prêmio IberFAD, recebeu a menção honrosa no prêmio Pedra na Arquitetura e o primeiro prêmio na 1a Bienal Ibero-americana de Arquitetura e Engenharia Civil, em 1999.

Nas Casas Pátio em Matosinhos - finalista na 3a Bienal Ibero-americana de Arquitetura e Engenharia Civil em 2002 -, o espaço entre os muros se transforma em pátios-jardim, onde a vegetação exacerba os muros, fundindo-se com os jardins vizinhos, mantendo a identidade do lugar e integrando projeto. O minimalismo manifesta-se tanto na redução dos elementos de linguagem quanto na simplificação das formas; tanto na busca da transparência e da imaterialidade quanto na criação de formas sólidas, opacas.

A partir da Casa em Cascais (2002), Souto de Moura começa a se afastar da linguagem miesziana que o definiu em uma primeira fase, como na casa em Moledo do Minho (1998), em Caminha - com seu programa simples e de um só nível, mas com uma cobertura ortogonal parecendo ser mais um nível da nova topografia do terreno - e o bloco habitacional na Rua do Teatro (1995), no Porto, com sua estrutura metálica e janelas contínuas. A partir dos primeiros anos de 2000, começa a redesenhar a forma de construir e a criar arquitetura pela complexidade e dinamismo de formas, mas sempre com o cuidado do desenho espacial habitual.

No mesmo ano de 2002, o arquiteto inaugura duas importantes obras: a casa na Serra da Arrábida e o passeio marítimo de Matosinhos Sul. O passeio marítimo reforça uma mudança de programa, fora da arquitetura residencial. O arquiteto passa a ter o traço mais ousado e mais próximo da arquitetura pública.

A partir desse momento sente-se claramente a nova postura, como na Casa do Cinema, no Porto, que teve nas janelas um de seus pontos altos. Souto de Moura explica em entrevistas que quis superar a dificuldade de desenhar janelas, o mais difícil de se fazer em arquitetura. Para ele, era a prova definitiva.

Mas o símbolo marcante da mudança foi a Estação Casa da Música do Metrô do Porto (1997/2003), vencedor de concurso. Com a complexa tarefa de compatibilizar as rigorosas regras técnicas que determinam o sistema, e a acidentada topografia do centro histórico, Souto de Moura percebeu que, o que poderia parecer um obstáculo, um sistema fechado e incômodo, poderia transformar-se no redesenho da cidade.

Além dos fatores projetuais, obras públicas dependem da vontade política. Uma das dificuldades é que o poder político local muda de quatro em quatro anos e, nesse tempo, não é possível atuar de forma coerente e com convicção no território. "No Metrô do Porto seguimos exatamente esse tipo de processo. Ao longo de 13 ou 14 anos houve uma relação política com pessoas que estavam determinadas a construir o metrô. Depois, atuamos a partir de fragmentos, estação a estação, e tentamos ser lúcidos de modo a perceber quais eram os elementos com os quais queríamos trabalhar (...). Conseguimos estabelecer estratégias pon­tuais, sempre economicamente viáveis pa­ra o dono da obra(...). Foi, sim, atuar ponto por ponto e com algum bom-senso e, por soma­tório, ir tirando conclusões", disse Souto de Mou­ra em entrevista.

O arquiteto comenta que a mudança de rumo no seu trabalho foi para não virar um academicismo de si mesmo. Que ao fazer uma casa-pátio que cumpria todas as regras base, sentiu que a forma estava perto da fórmula e que, assim, deixou de conter a crítica desejada. Essa mudança correspondeu também a uma mudança de escala nos trabalhos - sem deixar de se ligar à situação sociopolítica de Portugal, onde operar por um sistema regrado como forma de resistência a uma situação plural, caracterizada por uma perda ideológica, não teria mais sentido.

No Estádio Municipal de Braga, o imaginário de teatro e o cenário da pedreira - onde a obra foi edificada - nada remete às primeiras obras do arquiteto, mas carrega muito mais dessa segunda etapa. Com as arquibancadas abertas para uma grande colina rochosa, o estádio demonstra a coexistência entre o natural e o que foi feito pelo homem.

Em 2007 é completada a Torre do Burgo, no Porto, sua cidade natal, concebida no início dos anos 1990: dois edifícios, um vertical e um horizontal, em diferentes escalas. O horizontal funciona como base e é uma plataforma de baixa altura que ocupa todo o perímetro do solar, fundindo-se à paisagem. O segundo volume, vertical, afastado em relação à via, eleva-se desde a plataforma. O edifício é singular na carreira do arquiteto que, pela primeira vez, projeta uma obra de 20 andares, diferente de suas casas ou de obras de infraestrutura.

Citado pelo júri do Prêmio Pritzker como um dos mais importantes projetos do arquiteto, o Museu e Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais, a poucos quilômetros de Lisboa, foi concluído em 2008, e inteiramente dedicado à obra dessa pintora portuguesa. Souto de Moura pode escolher o local, propondo um conjunto de volumes de alturas variadas, com duas grandes pirâmides ao longo do eixo de entrada.

Eduardo Souto de Moura pode ser definido como um arquiteto que soube extrair energia dos locais onde realizou seus projetos, assumindo a realidade como a dimensão poética da arquitetura. "De tudo que se faz, permane­ce a poesia, vital para as pessoas e para a história" afirma. Em sua busca incansável pela integração de suas obras ao que as rodeia, segue convicto de que a poesia é o real.

Bibilografia

Revista El Croquis, edição 124. Eduardo Souto de Moura 1995-2005
Prêmio Pritzker de Arquitetura 2011
JA - Jornal dos Arquitectos, edição 225. Publicação trimestral da Ordem dos Arquitectos de Portugal
Revista 2G, edição 5. "Souto de Moura". 1998
SOUTO DE MOURA, Eduardo. Conversaciones con Estudiantes, Gustavo Gili, Barcelona, 2008

Laura Sobral é arquiteta e urbanista formada pela FAUUSP. Pesquisa e atua na ativação do espaço público por microarquiteturas e com cenografia.

 

Fonte:

http://au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/206/artigo214852-1.aspx

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