Cantinho do Céu, projeto que integra o Programa Mananciais, da prefeitura de São Paulo. A reurbanização da área começou em 2008 - Daniel Ducci
Se a cidade não vai até a favela, a favela vai até a cidade. É com essa frase na cabeça que arquitetos e urbanistas brasileiros estão lidando com o problema dos bairros pobres nas grandes cidades do país. Depois de anos de exclusão, a palavra-chave passou a ser integração.
Em São Paulo, por exemplo, os conjuntos habitacionais no estilo do Cingapura, com arquitetura militar e prédios enfileirados, cederam lugar a edifícios mais humanos. É o caso do Nova Jaguaré, na Zona a Oeste da cidade, projetado pelo arquiteto Marcos Boldarini. Além de locais de lazer e espaços integrados que incentivam a circulação dos moradores, os prédios ganharam uma área comum no topo dos edifícios, usada para festas e churrascos – uma versão da laje, tão presente nas casas aglomeradas em favelas, transportada para o asfalto. Cada apartamento tem pouco mais de 50 metros quadrados divididos em uma sala, cozinha, banheiro e dois ou três quartos. As janelas são grandes, os cômodos bem iluminados e com boa circulação de ar. O custo médio de cada um é de 70.000 reais.
“Habitação é mais do que a simples moradia”, acredita Boldarini. “É necessário que haja uma aproximação com o espaço público e uma apropriação desse espaço.”
Cantinho do Céu - Amparado nessa tese, o arquiteto revolucionou uma área da cidade (onde moram 10.000 famílias) às margens da Represa Billings, no Grajaú, Zona Sul da capital paulista. O projeto, que integra o Programa Mananciais, da prefeitura, foi chamado de Cantinho do Céu. O local, antes tomado por vielas de terra, lixo e casebres cujos moradores despejavam esgoto in natura na represa, agora dispõe de academia para a terceira idade, pista de skate, mesas de ping-pong, quadra de bocha, campo de futebol, playground, deque de madeira e um parque linear. Cada uma das ruas – asfaltadas – tem uma área de lazer a poucos metros de distância. Também foram contemplados iluminação das áreas comuns, rede esgoto e drenagem do solo. As ruas mais largas favorecem o transporte público e de serviços no bairro.
“É como um sonho”, resume Vera Lucia Basalia, de 61 anos, 23 deles vividos no Parque Residencial dos Lagos, por onde passa o parque linear de Boldarini. “Antes, a gente tinha que ir até o centro de São Paulo para conseguir se divertir. Agora não. Ganhamos o nosso Parque do Ibirapuera. Muitos vêm do centro de São Paulo para conhecer a região. Hoje, temos orgulho do bairro”. Vera diz que a revitalização do espaço público reduziu a violência e o número de adolescentes envolvidos com drogas. “Os jovens não tinham o que fazer”, conta Vera, que é presidente da Associação de Moradores do Parque Residencial dos Lagos desde 1992. “Agora, querem praticar esportes e jogar capoeira”. As casas, antes vendidas por cerca de 25 000 reais, agora não custam menos que 100 000 reais. “Ninguém mais quer mudar daqui”, afirma com entusiasmo, dizendo que até a água da represa está mais limpa.
“Quando moram em um lugar digno, os moradores começam a se sentir parte da cidade”, explica Boldarini. “Com isso, passam a cuidar mais do espaço público, porque sentem que aquilo lhes pertence.” Em entrevista ao site de Veja, esse foi o ponto salientado por Dennis Frenchman, uma das maiores autoridades na área de planejamento urbano e transformação de cidades do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês): “É preciso estimular as pessoas a se apropriar do território onde moram. Fazer com que elas se sintam parte da cidade e não de uma comunidade abandonada”.
O projeto de Boldarini incluiu os três pontos que Jaime Lerner, arquiteto que antes de assumir o governo do Paraná revolucionou a paisagem urbana de Curitiba, considera essenciais num projeto urbanístico: mobilidade, sustentabilidade e coexistência entre a cidade e os moradores. Neste sábado, o Cantinho do Céu terá sua primeira sessão de cinema, com tela e arquibancada ao ar livre e às margens da represa. Muitos moradores verão pela primeira vez um filme numa tela grande. E perto de casa.
Segundo Boldarini, um dos segredos do sucesso é ouvir os moradores. Com ele concorda Carlos Luiz de Toledo, o arquiteto que concebeu o Plano Diretor Sócio-Espacial da Rocinha, no Rio de Janeiro. Em 2008, três anos antes da pacificação, ele ganhou o Concurso Nacional de Ideias para Urbanização do Complexo da Rocinha, organizado pela prefeitura carioca, e instalou um escritório numa das ruelas do morro. “Além de termos dois moradores trabalhando conosco, fizemos mais de 50 reuniões com representantes de todos os sub-bairros da Rocinha”, conta o Toledo. Ele explica que, em consequência de suas dimensões gigantesca (quase 100.000 moradores), a Rocinha funciona como uma cidade e é dividida em pequenos bairros. “Não foi algo feito dentro do gabinete. Foi um plano feito pelos moradores, para os moradores. Ninguém melhor do que eles para saber quais as são as prioridades.”
Rio de Janeiro - Toledo esclarece que a ideia de passar uma tábula rasa nas favelas – ideal perseguido por muitos urbanistas até recentemente –, é inviável. Seja do ponto de vista econômico, social ou político. Primeiro, pela impossibilidade de construir num curto espaço de tempo moradias suficientes para todos. Segundo, por causa da identificação das pessoas com o lugar. “A ausência do poder público fez com que o morador construísse com as próprias mãos não só a casa onde mora, mas a própria rua, a rede de iluminação, na maioria das vezes clandestina, de água, de luz, de esgoto”, enumera Toledo. “É um nível de pertencimento que quem vive no asfalto não consegue mensurar.”
Crítico impenitente da instalação de um teleférico na Rocinha – semelhante ao que foi construído no Complexo do Alemão, também no Rio de Janeiro –, Toledo argumenta que outras prioridades precedem o que ele chama de firulas: água encanada, rede de iluminação pública e de coleta de esgoto, por exemplo. “Mais importante do que a quantidade de fuzis que saíram depois da pacificação, foram as toneladas de lixo”, diz. “As pessoas do asfalto se impressionam com a sujeira, mas como é possível que eles mantenham o lugar limpo se os caminhões de lixo não sobem os morros?”
Na Rocinha, Toledo optou por soluções singelas, dando prioridade aos que se deslocam a pé. “Durante meses, analisamos os caminhos feitos pelos moradores para compreender as diferentes estratégias utilizadas para fazer compras, visitar amigos, ir a escola e ao trabalho”, conta Toledo. “Os percursos na Rocinha são repletos de escadarias mal projetadas e outras barreiras que tornam as caminhadas praticamente impossíveis para idosos ou portadores de necessidades especiais.”
Para isso, as principais intervenções do arquiteto na Rocinha incluíram, por exemplo, abrir espaço na principal rua para baias de ônibus ou compactadores da empresa de coleta de lixo. O estacionamento de veículos foi regularizado, os ônibus substituídos por micro-ônibus e foram construídos cinco planos inclinados. Ideias simples que deram certo.
Tanto Toledo quanto Boldarini reconhecem que demolir as paredes invisíveis levantadas em torno das favelas é mais difícil do que asfaltar ruas, criar áreas de lazer ou erguer conjuntos habitacionais. A favela começou a ir até a cidade. Agora é a vez de a cidade ir, de uma vez por todas, até a favela.
Fonte: http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/a-demolicao-das-paredes-invisiveis
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