A cidade e o arquiteto

A cidade do arquiteto não é uma cidade que apenas funcione ou apenas seja bela. Em vez disso, a cidade do arquiteto busca equilibrar fluxos, lazer, habitação, cultura, economia.

Angelina Jolie é linda. Acima dos olhos verdes e amendoados, a vasta cabeleira interrompe, subitamente, a longa testa. A linha precisa criada por essa transição é completada, na parte inferior do rosto, pelo maxilar quadrado, que parece mais proeminente devido aos minúsculos lóbulos das orelhas. O maxilar emoldura uma boca carnuda, quase obscena. Uma pinta acima da sobrancelha esquerda fornece um toque corriqueiro a um conjunto nada trivial.

Até a pouco, a profissão de arquiteto, no Brasil, estava vinculada ao Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea). Porém, após uma luta de mais de meio século, os arquitetos conquistaram uma autarquia específica, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), regulado pela Lei 12.378, assinada pelo então presidente Lula. Em 2009, enquanto o projeto de Lei do CAU percorria o Congresso Nacional, o Confea realizou uma pesquisa quase secreta com os arquitetos brasileiros para saber o “real” interesse da classe. Se a maioria dos arquitetos dissesse “não” ao projeto de Lei, o Confea disporia de argumentos para mostrar que tudo se resumia à birra de alguns poucos. O resultado mostrava o contrário: mais de 70% dos arquitetos nativos queriam uma entidade própria. Os dirigentes do Confea não conseguiam entender tal insistência.

Ao longo de décadas, vigiam, no interior do Confea, algumas postulações que ofendiam os arquitetos: “engenheiro é realista, constrói e preocupa-se com a funcionalidade; arquiteto é sonhador, projeta e preocupa-se com a beleza”. Imaginemos a aplicação dessa ideia a um projeto genético cujo objetivo fosse criar um animal chamado... Angelina Jolie.

Uma equipe de engenheiros projetaria o esqueleto e os órgãos, cuidando de que tudo funcionasse com o máximo de eficiência. Depois que o projeto “funcional” estivesse pronto, arquitetos seria chamada para retocar a obra e tornar-lhe bela. O equívoco da divisão de atribuições se tornaria evidente no momento de resolver a boca, cujo impacto visual depende do maxilar quadrado. Mas como embelezar o exterior se, no interior, não houvesse um osso com aquela forma específica?

Afinal, o nariz de Angelina Jolie não é apenas belo, mas cumpre a função de proteger as fossas por onde o ar flui até o pulmão. Os olhos esverdeados não são apenas fatais, mas permitem que ela enxergue. A boca permite que ela fale e ingira alimentos. Uma Angelina Jolie apenas “funcional” seria uma garota horrorosa forrada com sistemas gástrico e respiratórios eficientíssimos na absorção de nutrientes e oxigênio; uma Angelina Jolie apenas bela, com uma fachada glamorosa cobrindo um interior improvisado, morreria de inanição e sufocamento. Ou seja: o projeto genético de Angelina Jolie não pode separar o belo do funcional. Beleza e função harmonizam-se e nasceram juntas, num projeto único. É assim que os arquitetos entendem a sua profissão.

A cidade do arquiteto não é uma cidade que apenas funcione ou apenas seja bela. Em vez disso, a cidade do arquiteto busca equilibrar fluxos, lazer, habitação, cultura, economia. Em Curitiba, alguns exemplos desse equilíbrio aparecem em projetos como o Parque Barigui ou a Rua Co­­­mendador Araújo. O Parque Barigui protege e saneia um trecho do rio, preserva a mata nativa, cria um reservatório que protege a cidade das mazelas das enchentes, fornece lazer e é agradabilíssimo. Na Rua Comendador Araújo, as árvores, as latas de lixo, os bancos de praças e os postes enfileiram-se numa lateral da calçada, o que libera a outra lateral para os pedestres. Os bancos estão posicionados frente a frente, com pequenas floreiras fechando o lado que se volta para o asfalto, criando uma sensação de conforto e sossego. A Comendador Araújo parece uma grande sala. Não há nenhum item urbanisticamente inútil. Todos cumprem uma função. E a beleza não é uma maquiagem posterior, mas o resultado de uma formulação que resolveu as condicionantes de um problema urbanístico e as integrou num projeto único e harmonizado.

Irã Taborda                                                                                            Irã Taborda Dudeque, arquiteto, é professor da PUCPR.

Este texto faz parte de uma rodada quinzenal de discussões sobre a cidade. Também integram o grupo os arquitetos Clóvis Ultramari, Fabio Duarte e Salvador Gnoato. Tema desta rodada: o papel do arquiteto na construção das cidades.

Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=1232522&tit=A-cidade-e-o-arquiteto

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