Não só de Minha Casa Minha Vida se faz uma política de habitação

A partir do final do século XIX, quando o Brasil começou um processo de urbanização mais acelerado, as cidades foram surgindo e crescendo desordenadamente, sem considerar o sítio em que eram implantadas, nem a problemática ambiental decorrente, ignorando também a quase inexistente legislação exigida, em maior parte voltada para questões sanitárias e higienistas.
As cidades foram se espraiando, cindidas em uma “cidade legal”, destinada aos ricos, onde o poder público está presente, e uma “cidade ilegal”, onde vivem os mais pobres, caracterizada pela ausência do Estado, sem infraestrutura adequada, sem uma rede de serviços públicos e sujeita às tragédias “naturais” (MARICATO, 2008).
Esta ausência do Estado não deixa de ser uma política pública, de acordo com o observado por Souza (2006), a partir da definição dada por Dye (1984), “o que o governo escolhe fazer ou não fazer”, ou de Bachrach e Baratz (1962), “não fazer nada em relação a um problema também é uma forma de política pública”. Os loteamentos clandestinos, loteamentos irregulares, áreas de invasão e favelas vão se tornando a solução de moradia para a população dos centros urbanos, expandindo a cidade ilegal, mediante a falta de planejamento urbano e da falta de soluções para os problemas habitacionais.
No Brasil as desigualdades sociais ainda atingem proporções alarmantes, existindo um grande abismo entre ricos e pobres. Nesse contexto a presença do Estado e as políticas públicas são temas constantes de discussão pois são maneiras de dirimir essas diferenças e tentar assegurar direitos para a população — se não para toda população, ao menos para a sua maior parte, os pobres. Entre essas políticas públicas podemos destacar a política de desenvolvimento urbano, que tenta enfrentar a expressão física das desigualdades nas cidades, através da articulação de suas diversas políticas setoriais — habitação, regularização fundiária, saneamento, transporte e mobilidade.
A regularização fundiária assume o papel de condicionante para as diversas políticas setoriais que se complementam em busca dos objetivos contidos no Estatuto da Cidade e na integração da massa de excluídos às benesses da cidade legal. Começa então toda uma movimentação para o desenvolvimento de uma política de Regularização Fundiária, envolvendo diferentes agentes na elaboração de um novo regramento jurídico, e a implantação de programas e projetos que possibilitem atender aos anseios dos cidadãos… “para regularizar os bairros construídos com o próprio esforço da população” (CARVALHO e GOUVEIA, 2009).
A maior novidade, no entanto, ficou por conta da aprovação em 2009 da Lei 11.977, junto com o regramento do Programa Minha Casa Minha Vida, a primeira lei nacional de regularização fundiária urbana. Grande parte do seu texto estava sendo discutido na Câmara Federal no âmbito do projeto que revisa a Lei 6.766, lei do parcelamento do solo urbano, os legisladores acharam por bem aprovar o que era consenso e destinar o Capítulo III da lei do PMCMV para tratar da regularização fundiária de assentamentos urbanos.
A Lei define o que é e qual as dimensões da regularização fundiária plena no seu Artigo 46, consistindo no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. As políticas daí decorrentes tentam abarcar essa definição e construir um novo cenário no enfrentamento das problemáticas urbanas das cidades brasileiras.
Partindo destes antecedentes, analisamos rapidamente alguns pontos levantados durante o “61º Fórum Nacional de Habitação de Interesse Social” (26 a 28 de março de 2014). O Fórum foi promovido pela Associação Brasileira de Cohabs e Agentes Públicos de Habitação (ABC) e pelo Fórum Nacional de Secretários de Habitação e de Desenvolvimento Urbano (FNSHDU).
Apesar das diversas experiências exitosas que foram demonstradas, o tom geral foi de certo pessimismo de como andam os programas de repasses e o planejamento das cidades. Em boa parte não pela falta de interesse dos entes locais, mas sim pelo cansaço das políticas centrais, que se mostram insuficientes e desfocadas das realidades diversas das cidades brasileiras e em desconformidade com suas próprias políticas e mecanismos de planejamento — Estatuto da Cidade, Política Nacional de Habitação de Interesse Social, Plano Nacional de Habitação, etc.
Todos os esforços no campo habitacional vêm sendo concentrados no Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), sendo este um programa de peso para o combate ao deficit habitacional e à demanda por novas unidades, mas definitivamente não interfere significativamente, devido ao seu próprio regramento, nos demais aspectos dos componentes do deficit — habitações precárias, falta de infraestrutura, regularização fundiária, etc. Como foi citado durante o encontro:“-Corremos sérios riscos de, concluídas as duas fases do programa MCMV, termos mais gente morando em favelas do que no início do programa”. Isto porque o PMCMV não é uma política adequada para este tipo de enfrentamento.
O mecanismo ainda existente utilizado para tal fim trate-se do “Programa de Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários” (URIAP), que faz parte do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) — geridos pela Secretaria Nacional de Habitação. O programa teve um último edital de seleção no ano de 2011. O Ministério das Cidades (MCidades) alega que o programa não é tao eficiente quanto o PMCMV, que os projetos têm pouca efetividade, que os recursos ficam destinados para essa finalidade e parados por muito tempo, que os projetos apresentados estavam pouco detalhados ou em muitos casos não refletiam a realidade da intervenção (a expressão “projetosfakes” chegou a ser utilizada por uma representante do MCidades), etc. Mas alguém não sabia que se tratavam de projetos em favelas e loteamentos irregulares? Alguém duvidava da complexidade desse tipo de intervenção? A solução encontrada pelo gestor vem sendo utilizar a política da omissão, não realizando novas seleções. Enquanto isso, boa parte de famílias que não encontram guarida no mercado ou mesmo no PMCMV, engrossam a massa de pessoas que procuram outras soluções habitacionais precárias.
Uma maneira de qualificar o programa seria manter seleções constantes de novos projetos, fazendo com que os governos locais tivessem segurança em planejar e dimensionar seus esforços ao longo dos anos, desenvolvendo projetos mais maduros e detalhados. Da mesma maneira o MCidades poderia investir mais tempo na análise e qualificação desses projetos, esmiuçando suas etapas e prevendo obstáculos na sua execução — exigindo peças técnicas condizentes com o tamanho dos investimentos, orçamentos e planos de aplicação, análises técnicas realizadas in loco, levantamento da situação documental, etc.
Outra questão importante trata da Regularização Fundiária, política específica dentro da Secretaria de Programas Urbanos (Programa Papel Passado), mas também uma dimensão a ser alcançada dentro dos projetos do URIAP. Não vem sendo destinados recursos suficientes de maneira a atender às demandas de prefeituras e estados. Foram poucos os editais de seleção para o programa, e ainda sofreram com os cortes orçamentários, diminuindo o número de propostas enquadradas. Ao longo desse processo também se vê a mudança constante da metodologia de apresentação das propostas; a falta de entendimento das questões e obstáculos locais; a falta de capacitação dos entes locais, sendo que há equipes bem formadas em determinados municípios, e muita carência em outros — além de carência e capacitação de técnicos nos bancos responsáveis pelos repasses e nos órgãos de controle.
Uma política clara que poderia dar resultados seriam programas de capacitação voltados aos casos reais de cada ente, em lugar das capacitações genéricas promovidas pelo EAD Capacidades. No caso da regularização seria muito mais proveitoso a realização de oficinas específicas em diferentes etapas; inicialmente faz-se um nivelamento com os instrumentos de regularização, os dados necessários e o passo a passo; num segundo momento, já munidos do diagnóstico local, parte-se para o detalhamento dos projetos, realizados junto com especialistas e a equipe responsável pela seleção do MCidades. As propostas seriam construídas em conjunto, agregando soluções encontradas em outros municípios, discutindo os casos e avançando na capacitação das equipes locais. Da mesma maneira poderiam se fazer encontros específicos para o gerenciamento desses projetos, promovendo a troca de experiências entre prefeituras, estados, movimentos sociais e o poder judiciário, avançando em muito a capacitação das ações de Regularização Fundiária.
Vistos separadamente o Programa URIAP e o Programa Papel Passado têm sérios problemas na sua execução, e mais sérios problemas na sua periodicidade de oferta e escala, porém, vistos em conjunto, poderiam vir a ser soluções de médio prazo para um efetivo combate às situações informais. Primeiramente destinando recursos suficientes para o desenvolvimento de projetos pelos entes locais para a regularização fundiária por meio do Programa Papel Passado (cuidando do campo jurídico, social e ambiental). Em um segundo momento desenvolvendo melhores projetos de urbanização e infraestrutura dentro do escopo do URIAP — obtendo a tão desejada eficiência ao longo da execução dos projetos.

Bibliografia:
CARVALHO, Celso Santos e GOUVEIA, Denise de Campos (Organizadores). Regularização Fundiária Urbana no Brasil. Brasília – DF. Ministério das Cidades, 2009.
HEIDEMANN, Francisco G. e SALM, José Francisco (orgs.) Políticas públicas e desenvolvimento: bases epistemológicas e modelos de análise. Brasília – DF. Ed. Universidade de Brasília, 2009.
MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. 3ª Edição, Petrópolis – RJ. Editora Vozes, 2008.
SOUZA, Celina. Políticas Públicas: uma revisão da literatura. IN Sociologias nº 16. Junho/dezembro 2006, p. 20-45

sobre o autor


Lúcio Milhomem Cavalcante Pinto é arquiteto e urbanista/UNITINS (2001), mestre em Desenvolvimento Regional PGDR/UFT (2012), técnico da prefeitura de Palmas e do escritório de consultoria Aldeia Arquitetura e Urbanismo Ltda.

Fonte: http://habitabrasil.blogspot.com.br/2014/04/nao-so-de-minha-casa-minha-vida-se-faz_1.html

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